A Semente Cristã em Solo Carioca
Nelson Rodrigues, um observador astuto das contradições culturais do Brasil, produziu uma obra onde o Cristianismo assume um papel central, mesmo quando se faz presente por meio de sua ausência e das falhas de seus personagens. O Beijo no Asfalto é uma peça que critica as falhas do moralismo social - com um verniz cristão, mas de fundo diabólico -, revelando para tanto um olhar honesto sobre os conflitos existenciais da sociedade brasileira. Em sua obra, o Cristianismo, com sua relação de amor e ódio com o Rio de Janeiro que o autor pinta tão gostosamente em seus dramas, revela-se um fio condutor para se compreender a tensão entre o divino e o humano nessas plagas.
Elementos Cristãos em O Beijo no Asfalto
O Cristianismo, na sua dimensão moral e espiritual, permeia a obra de Nelson Rodrigues de maneira paradoxal. Por um lado, ele é a base de muitas das questões existenciais enfrentadas por seus personagens, e por outro, é justamente esse mesmo Cristianismo que é confrontado pelas falhas morais, as mentiras e as fraquezas dos indivíduos. Em O Beijo no Asfalto, dois elementos do Cristianismo têm um peso nada desprezível na trama: a verdade e a fidelidade conjugal.A Ausência da Verdade: O Motor da Trama
No Evangelho, a verdade é revelada como algo que liberta, uma das chaves para a salvação e a vida plena. Em O Beijo no Asfalto, essa busca pela verdade é a grande ausente. A peça retrata uma sociedade onde as mentiras e as faltas de dados se entrelaçam, onde as informações distorcidas circulam com força, levando os personagens a agirem com base em percepções subjetivas. A verdade que, no Cristianismo, deve ser buscada de maneira sincera e libertadora, no Rio de Nelson Rodrigues se perde em um mar de ficções e especulações alimentadas pela imprensa e pelo poder.Esse vácuo da verdade é o que move a tragédia de Arandir, cujo gesto de misericórdia, ao ser deturpado pela imprensa, desencadeia uma série de consequências trágicas. A ausência da verdade é palpável, especialmente na forma como os personagens interpretam o beijo de Arandir como algo diferente do que é: uma compaixão, ainda que simplória e sem-jeito diante da morte.
A Fidelidade Conjugal e a Tragédia do Matrimônio
O Cristianismo também coloca grande ênfase na fidelidade conjugal no matrimônio heterossexual, tratando-o como um vínculo sagrado. Essa visão é refletida nas tensões da peça, que se desenvolvem a partir de um ato de infidelidade, o beijo de Arandir. A peça de Nelson Rodrigues não faz uma crítica ao valor cristão da fidelidade. Pelo contrário, ela o exalta ao mostrar a tragédia que ocorre quando ele é violado. Em sua natureza melodramática, a trama revela os danos irreparáveis que a transgressão pode causar não apenas ao indivíduo, mas também à sua família.A infidelidade de Arandir, embora movida por uma compaixão, não deixa de ser uma violação dos princípios cristãos da fidelidade e da sacralidade do matrimônio. Esse ato, do qual ele bestamente se orgulhará, expressando a húbris típica da tragédia grega, destrói não apenas a confiança entre ele e Selminha, mas também os coloca em uma espiral de conflito que desestabiliza as estruturas emocionais de suas vidas. Nelson Rodrigues, com maestria, faz de um pequeno ato de compaixão desordenada um evento carregado de consequências funestas, que expõem a falibilidade dos indivíduos em relação aos ideais cristãos.
O Escândalo
Nelson Rodrigues cria uma tragédia ao mostrar o momento em que as paixões e apetites assumem um protagonismo que ameaça e subjuga a verdade e a fidelidade. A peça se desenrola em torno de um beijo que, ao ser mal interpretado e distorcido, acaba por revelar a fragilidade humana diante de seus próprios impulsos. As paixões incontroláveis e os sentimentos exacerbados dos personagens, imersos em um contexto de hipocrisia e julgamento precipitado, demonstram o quanto a cultura brasileira é propensa a cair nas armadilhas do escândalo.A força das paixões humanas, quando descompensadas e mal canalizadas, torna-se uma espécie de poder destruidor, um elemento que minará a capacidade dos personagens de agir com prudência, honestidade e integridade. Em O Beijo no Asfalto, as emoções sexuais e as reações humanas se tornam forças que não podem ser controladas ou redimidas.
O escândalo não apenas ocorre, mas se espalha de maneira incontrolável. A imprensa sensacionalista, representada pelo repórter Amado Ribeiro, exerce um papel fundamental na amplificação desse escândalo, moldando a percepção pública e arrastando personagens como Selminha e Aprígio para a espiral de suspeita e condenação.
No final, Arandir é completamente destruído pelo escândalo, um desfecho típico dos processos de linchamento social descritos pelo antropólogo francês René Girard. A multidão, movida por um desejo de purificação nada cristão, não busca a verdade, mas sim um culpado. Esse desfecho evidencia a dinâmica sacrificial presente na sociedade, onde aqueles que quebram tabus, para o bem ou para o mal, são sacrificados para restaurar a ordem.
Arandir: Compaixão Brasileira sem Critério Cristão
Arandir, o personagem central da peça, apresenta uma contradição fascinante. Sua compaixão – um sentimento profundamente cristão – é canalizada para um ato de infidelidade, um beijo homossexual em um moribundo , ato que, embora motivado pela piedade, é contrário ao que o Cristianismo ensina sobre o corpo e o casamento. Arandir, ainda que movido pela boa intenção de brasileiramente improvisar cuidados paliativos no meio da rua, acaba por ceder a um pedido sensual e patético, violando o pacto sagrado do matrimônio.A tragédia de Arandir reside em sua incapacidade de equilibrar sua compaixão com a fidelidade conjugal. Sua escolha, embora compreensível do ponto de vista emocional, leva-o a um erro tornado irreversível pela impiedade que o cerca. Um simples beijo, desprovido maior carga sexual porque dado nos lábios de um quase defunto, será o ponto de partida para a desestruturação de sua vida e de seu casamento com Selminha.
Selminha: Outra Contradição do Catolicismo Brasileiro
Esta, por sua vez, representa outra faceta das contradições brasileiras no que diz respeito ao catolicismo. Sua reação ao beijo de Arandir é, de certa forma, uma representação da moralidade católica, mas também da falha do espírito carioca em lidar com a realidade humana. Embora ela, em sintonia com o cristianismo, não aceite o beijo homossexual como um ato legítimo de compaixão, e se revolte com a transgressão de seu marido, também se nega a desculpá-lo, alimentando uma distância emocional que, ao fim e ao cabo, a impede de perdoar de maneira cristã. Sua incapacidade de perdoar é uma falha que também espelha as tensões entre o ideal cristão do perdão e a realidade dura das paixões humanas.Conclusão: A Tragédia Brasileira e a Religiosidade de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues, ao retratar as contradições entre a cultura brasileira e a religião católica, apresenta-nos uma visão trágica, não desprovida de pitadas de humor. O Beijo no Asfalto não é uma crítica ao Cristianismo, mas uma exploração das falhas e contradições que surgem quando os raios do sol cristão incidem sobre as fraquezas humanas e sobre a realidade social do Brasil. Em sua escrita, Nelson revela a tragédia de uma sociedade amada por ele e que tenta, mas não consegue, viver de acordo com as virtudes cristãs da verdade, da fidelidade e do perdão, mostrando que, apesar da tentativa de se erguer a uma moral elevada, a natureza brasileira, com o lastro de suas paixões e erros, teima em se impor.É por esse gosto de Brasil e pela habilidade de Nelson Rodrigues em abordar essas problemas complexos nascidos do nosso solo que continuo a apreciar a sua obra, e especificamente O Beijo no Asfalto, uma peça que nos obriga a refletir sobre essa moralidade cristã à brasileira, com todas perplexidades e dificuldades que essa expressão provoca.