Comunhão Popular, Zelo e Inveja

 

Inveja segundo Giotto

Num grupo de WhatsApp de que me honra participar, surgiu o assunto Bolsonaro. Mais precisamente, postaram um link para uma página do Comunhão Popular comemorando a condenação dele, o que ensejou reservas de alguns membros quanto ao movimento político de Pedro Ribeiro, que passou a ser criticado como um pessoal que instrumentalizaria a doutrina social da Igreja para levar adiante suas posições políticas inaceitáveis. Seria necessário, pois, nas palavras quase literais de um dos participantes do grupo de WhatsApp, avisar aos católicos que o Comunhão Popular diverge da fé e alertar os irmãos quanto a esse perigo. 

Sempre me honrou participar desse grupo de WhatsApp e agora não menos. No entanto, por ser um grupo com uma finalidade apostólica, de cunho quase metafísico, lá não é o lugar para se falar de política corrente, nem há condições ambientais para isso. O máximo que se consegue é angariar simpatia de outros membros, com um dito espirituoso, para a própria pessoa, sem que as respectivas posições objetivas fiquem mais esclarecidas.  O Entre Letras & Labirintos, por outro lado, é um espaço  onde se pode, mais à vontade, lançar luz sobre o assunto. 

Cumpre, pois, aqui desagravar o Comunhão Popular, ainda que eu não endosse algumas das escolhas políticas de seus membros.  Apelar à fé para contradizer a postagem do Comunhão Popular é, isso sim, instrumentalizar a Igreja para levar adiante uma posição política ou antipolítica inaceitável. Os problemas brasileiros são muitos, e cada luta contra eles é legítima: ideologia de gênero, aborto, déficit democrático, corrupção, violência, falta de liberdade de expressão, desigualdade social, burocracia, carga tributária, ativismo judicial e até, para alguns, o casamento civil dissolúvel... No entanto, há muitos modos e ordens de prioridades, ambos opináveis, na busca por soluções. Os católicos podem livremente escolher as posições políticas e candidatos que enfrentem os problemas mais urgentes e do melhor modo, sem que isso contradiga necessariamente a sua fé. Alijar um movimento como o Comunhão Popular do debate entre católicos sob o argumento de que seria incompatível com a fé é não entender o âmbito de liberdade que se confere aos fiéis em matérias temporais.

Na época da morte civil para os monges, não fazia sentido prático, para quem estava num mosteiro, empreender um esforço de compreensão das diversas opções de solução para os problemas temporais. Esse espírito religioso transcendeu o claustro, e ainda há hoje cristãos na rua que evitam o encontro com quem pensa diferente em matérias opináveis porque não seriam suficientemente católicos. Esse catolicismo, no entanto, cheira à sacristia, um lugar venerável, ótimo para padres e coroinhas, mas que não é o ambiente mais propício para um debate político livre, plural e respeitoso.    

Ademais, não há mal intrínseco em comemorar a derrota de Bolsonaro. Pode-se até sustentar, no caso concreto, que a decisão envolve riscos para a liberdade de expressão e, portanto, a prudência aconselharia menos entusiasmo. Mas não se trata necessariamente de inveja, isto é, de prazer pelo sofrimento alheio. São Gregório Magno, citado por São Tomás na ST, II-II, 36, a. 2, alerta para uma situação comum em que seria temerário concluir pela inveja: "Evenire plerumque solet ut, non amissa caritate, et inimici nos ruina laetificet, et rursum eius gloria sine invidiae culpa contristet, cum et ruente eo quosdam bene erigi credimus, et proficiente illo plerosque iniuste opprimi formidamus". Em tradução livre: "Acontece frequentemente que, sem que a caridade se perca, a ruína do inimigo nos cause alegria, e, ao contrário, a sua glória nos cause tristeza, sem culpa de inveja; pois, quando ele cai, acreditamos que alguns se levantam para o bem, e, quando ele prospera, tememos que muitos sejam injustamente oprimidos."

É interessante notar, nesse ponto, que, pelo contrário, entristecer-se com as curtidas, esse capital das redes sociais, de quem divulga sua alegria pela condenação é, isso sim, um sentimento a ser evitado. Nem Aristóteles percebeu isso, mas São Tomás, corrigindo o filósofo, se lança a explicar que, para os gregos, a indignação pelas riquezas injustamente adquiridas - os likes, no caso -, levando o nome divino de Nêmesis, era algo de pessoas de bons costumes. Para um cristão, porém, a tristeza pela fortuna material alheia, que lhe é dada por Deus para sua perdição ou salvação, não deve ser motivo de tristeza, já que, comparada com os bens eternos, não é nada. Das duas uma, pois, a depender da visão de cada um: ou a alegria do Comunhão Popular é de reta intenção, e então nos cabe juntar-nos a eles e apor nosso like; ou o sucesso da sua divulgação é injusto, mas, como se trata só de comemoração político-partidária, meramente temporal, não nos cabe investir zelo contra ela.

O episódio revela, mais do que divergências pontuais sobre Bolsonaro ou sobre o Comunhão Popular, uma dificuldade natural num ambiente de rivalidade como é a arena política: a de distinguir entre o núcleo irrenunciável da fé e as opções prudenciais que a ela se somam. A tentativa de interditar a presença de um grupo ou pessoa num dado espaço por razões de política contingente não apenas distorce a tradição da Igreja, como também empobrece o debate público. A doutrina de São Tomás recorda que se deve evitar o juízo temerário e nunca abandonar a alegria, mesmo diante de certas situações que nos pareçam injustas. Nesse sentido, o desafio não é extirpar vozes discordantes, mas aprender a conviver com a pluralidade legítima de caminhos que, sem contradizer a fé, buscam enfrentar os males temporais de nossa sociedade.


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