O Sangue e a Crença


Antes de mais nada, gostaria de dizer que, embora as Testemunhas de Jeová mereçam todo o respeito, a ideia de que uma transfusão de sangue poderia comprometer a salvação da alma, como toda falsidade, não o merece. A salvação da alma não passa pelo exame do sangue que corre pelo corpo, mas pelas obras que acompanharão o homem na eternidade. Essa discordância radical, porém, não me impede de me irmanar com as Testemunhas de Jeová em seu desejo de viver, custe o que custar, segundo a sua fé. Embora louvável, essa aspiração pode ser obstaculizada pelo Estado, como foi debatido recentemente na Suprema Corte, rendendo um interessante julgamento.

Durante o processo, a dra. Bucchianeri, ao defender o direito das Testemunhas de Jeová de escolher tratamentos alternativos à transfusão de sangue, foi interrompida duas vezes pelo ministro Flávio Dino. Vamos começar pelo fim. Na segunda indagação, o ministro, ao problematizar o direito dos fiéis, que parecia inquestionável à advogada convicta de sua tese, sugeriu que, assim como a disposição do corpo não é lícita nos casos de venda de rins, a postura das Testemunhas de Jeová deveria ser vista, no mínimo, com cautela. Com argúcia, Bucchianeri lembrou que não há um direito fundamental de gerar lucro com a disposição do próprio corpo, mas existe um direito à liberdade religiosa, encerrando a questão.

O ministro foi mais feliz em sua primeira intervenção. Ele argumentou que a polêmica se intensifica ao pensarmos nos casos de incapazes. Poderia um pai, que professa a fé das Testemunhas de Jeová, impedir seu filho incapaz de receber uma transfusão de sangue? Eis o nó górdio da questão. Nesse ponto, porém, Bucchianeri não nos brindou com uma resposta tão clara, deixando a discussão para outra ocasião. Isso, entretanto, não nos impede de refletir um pouco sobre o assunto agora.

Partindo do pressuposto de que a pessoa não pode decidir por si mesma, resta determinar quem decidiria em seu lugar. O ministro Flávio Dino parece sugerir que o Estado deveria assumir essa função vicária. Outra maneira de ver o problema é considerar a família como a entidade mais adequada para substituir a vontade da criança ou de outro incapaz. A meu ver, essa última posição é mais coerente com o princípio da subsidiariedade, cuja riqueza de significados é vasta. Um desses significados, destacado pelo Compêndio de Doutrina Social da Igreja, afirma que:

"Todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda («subsidium») — e, portanto, de apoio, promoção e incremento — em relação às menores. Desse modo, os corpos sociais intermediários podem cumprir adequadamente as funções que lhes competem, sem ter que cedê-las injustamente a outros entes sociais de nível superior, pelos quais acabariam por ser absorvidos e substituídos, vendo-se, ao fim e ao cabo, privados de sua dignidade própria e espaço vital."

É comum ver menções à subsidiariedade em questões federativas. Assim, o STF reconhece que, em assuntos locais, a União e o Estado-membro não devem substituir os municípios, que estão mais próximos do problema. Seguindo a mesma lógica, o Estado não deve intervir em questões que a família pode decidir por si mesma, e uma dessas, sem dúvida, é o compromisso da criança com a fé religiosa. Pelo contrário, à sociedade maior cabe o papel de ajudar a menor a viver sua fé, possibilitando-lhe, mesmo no SUS, tratamentos compatíveis com suas crenças.

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