Entre Memória e Modelos: A Busca pela Autenticidade Verdadeira

 Mas o itacense não se esqueceu de si mesmo.

A memória está ligada ao passado. Portanto, quando Ulisses não se esquece de si mesmo no transe diante de Polifemo, ele não está pensando apenas no presente. Não se trata de mera autoconsciência. Ele tem em vista a sua própria identidade construída por seus feitos pretéritos: o homem engenhoso, mestre dos estratagemas, que sempre encontra uma saída para situações difíceis. Ao lembrar quem foi, Ulisses permanece fiel a si mesmo — sobretudo agora, ao renunciar à rivalidade pela glória militar e escolher voltar para casa.

Longe de Ulisses, assim, sofrer da crise de identidade típica da adolescência, fase da vida em que é preciso decidir o futuro sem o lastro de uma memória. Daí justamente a crise. Um ideia poderosa de René Girard, que poderia abrir a perspectiva a uma saída do problema, é que a questão Quem sou eu? pode ser traduzida, numa linguagem mais real, por Quem eu imito ao desejar isso ou aquilo?

A epifania de descobrir que almejo isso ou aquilo porque tomei, inconsciente, uma pessoa como modelo não tem preço. Com ela vem a liberdade de escolher o próprio modelo, que é autenticidade possível, a que vale a pena, porque da outra já estamos fartos.

Esses dias, um rapaz das letras que tive o prazer de conhecer em São Paulo, irmão de um grande amigo meu, dizia, de um determinado candidato nessa eleição, o seguinte:

"Um Pablo Marçal precisa necessariamente reafirmar a própria autenticidade o tempo todo. Como toda repetição perde força, um Pablo Marçal precisa sempre radicalizar um pouco mais a própria autenticidade. Então a manifestação de autenticidade vira, claro, uma performance de autenticidade, justamente o seu contrário: uma encenação."

Não faço ideia se a crítica de autenticidade encenada se aplica, de fato, ao Pablo Marçal, que não conheço para além da cadeirada. No entanto, a ideia da autenticidade se transformando numa performance encontra ressonâncias irônicas também na minha experiência. Já conheci pessoas únicas aos lotes, numa espécie de massificação da singularidade. Gente autêntica de verdade, porém, só aparece dentre aqueles que escolhem conscientemente seus modelos.

Na literatura, um exemplo interessante é Dom Quixote, que escolheu deliberadamente imitar cavaleiros como Amadis de Gaula. O aviso que tiramos desse mimese narrada por Cervantes, porém, é que o modelo não pode estar defasado nem se encaixar mal nas circunstâncias do eu. De qualquer maneira, a crise de identidade, em Dom Quixote, não existe. Ela é substituída, para efeitos cômicos, por uma crise de realidade. 

O Evangelho, nesse sentido, nos dá uma dica valiosa sobre como escolher nossos modelos. O Filho de Deus imita seu Pai, fugindo assim da rivalidade do Ulisses de Troia e da defasagem idealista de Dom Quixote. Bem fincado na realidade, o desejo de Cristo gera amor, perdão e sacrifício pelo bem dos outros.

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