São Tomás entre "Muito" e "Tudo"

 



Na Summa (IIa-IIa, Q. 1, A. 1), São Tomás trata da fé. Segundo ele, o objeto formal dessa virtude teologal é a verdade primeira, enquanto que o objeto material pode ser uma coisa criada enquanto ordenada a essa verdade primeira. Assim, por exemplo, o meio ambiente natural pode ser objeto material da fé, como mostra a Laudato Si. Da mesma forma, o riso pode ser objeto material de fé na medida em que reconhecemos sua origem divina: "O Senhor me fez rir", dizia Sara na Bíblia. E assim "muitas coisas mais..."

Nesse ponto, é interessante notar que São Tomás não diz que objetos materiais possíveis da fé são tudo, mas sim muitas coisas, o que nos leva a perguntar: lá no cantinho da mente do Doutor Angélico ao ditar essa passagem, ele reservou um lugar para  coisas criadas que não podem ser objeto material da fé? Em outras palavras, há coisas criadas que não podem ser conhecidas enquanto ordenadas a Deus? A resposta, a meu ver, é que há: não faz sentido, por exemplo, uma disputa teológica sobre a superioridade desse ou daquele time de futebol. A Igreja não se pronuncia sobre isso, porque Deus não revelou, nem de longe, que o Flamengo ou Botafogo seria mais glorioso...

Podemos dizer também, usando um jargão da pedagogia moderna, que os conhecimentos da fé não foram feitos para serem sempre e em todo lugar transferíveis. Antes de se enfrentar a dificuldade natural de se levar à rua um princípio ensinado em sala de aula, deve-se buscar saber se o dito princípio foi feito para ser aplicado naquele espaço de vida real. Portanto, antes do problema propriamente dito da transferência, quando o assunto é teologia, o sujeito deve se colocar a questão: quais os limites de aplicação prática das lições teóricas da Bíblia e da Tradição? Há quem diga que esses limites não existem, o que não conta com o apoio de São Tomás, pelo menos nessa parte da Summa, que não se alarga  até um "tudo". Há, porém, outros que estreitam demais esses limites, como se Deus só pudesse se pronunciar sobre sua existência, e todo o resto, inclusive as diversas religiões, seria indiferente, o que tampouco conta com a chancela de São Tomás, que fala em "muitas coisas".  

Seja como for, é fora de dúvida que esses recantos onde a verdade divina não tem um papel decisivo não podem, por sua vez, ter um papel decisivo na vida de uma pessoa de fé.  Assim, o que não pode ser objeto material de fé não tem luz suficiente para guiar os nossos passos. Nesse sentido vai aquele paradoxo de São Mateus: "Se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão essas trevas!" Trocando em miúdos, se a coisa criada que tentamos contemplar não pode ser vista sob a perspectiva divina e, mesmo assim, tomamo-la por luz, ela não ilumina, senão que escurece ainda mais a vida.

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