A Jurisdição Universal de Alexandre de Moraes: Inovação ou Desvio?
A soberania estatal, pilar fundamental da ordem internacional, implica, entre outras prerrogativas, o direito exclusivo de cada nação de decidir quais ordens judiciais estrangeiras acatará ou não. Tal poder não é um capricho, mas uma condição essencial para o funcionamento equilibrado do sistema global. Não vivemos em um mundo onde um magistrado de uma jurisdição qualquer pode, arbitrariamente, impor determinações de caráter universal a indivíduos e empresas além de suas fronteiras. Ao menos, ainda não.
No entanto, Alexandre de Moraes, num gesto de ousadia jurisdicional, decidiu inovar. Em lugar de recorrer aos instrumentos tradicionais de cooperação jurídica internacional, como a Convenção da Haia, as cartas rogatórias ou o auxílio direto, o ministro optou por uma abordagem singular: enviou um mandado diretamente à Rumble, em território americano, por e-mail. O expediente, cuja solenidade se equipara à comunicação de um boleto bancário ou de uma inscrição em newsletter, visava compelir a empresa a cumprir sua determinação, sob pena de restrições no Brasil.
É evidente que Moraes tinha plena consciência de que sua ordem dificilmente seria homologada pelo Estado americano. Afinal, os Estados Unidos, cuja tradição constitucional é fortemente enraizada na Primeira Emenda, tendem a rejeitar medidas que possam ser interpretadas como censura estatal. Sendo assim, um pedido formal, tramitado pelos canais usuais, teria grande probabilidade de ser recusado. A solução encontrada foi driblar tais instâncias e apostar na pressão direta sobre a plataforma, explorando a possibilidade de um cálculo pragmático por parte da empresa: cumprir a ordem para manter acesso ao mercado brasileiro ou resistir e enfrentar eventuais retaliações.
Esse imbróglio toca uma questão de fundo que precisa ser esclarecida. A internet é um espaço público, mas isso não a torna uma extensão do poder estatal. Público não significa estatal. A liberdade de expressão, nesse diapasão, é um bem público, mas não pertence ao governo. Ela diz respeito antes aos indivíduos que dela gozam numa dimensão cidadã. Confundir essa distinção é abrir caminho para uma interpretação autoritária da regulação das redes sociais, na qual a gestão dos discursos passa a ser um monopólio do Estado.
Assim, o argumento mais racional para a postura de Moraes não é que a internet brasileira é propriedade do Estado brasileiro. Seria, antes disso, o seguinte: se a internet percola a informação através das fronteiras sem grandes formalidades, então o Estado também poderia fazer o mesmo com suas ordens, em nome da efetividade das decisões judiciais. Mesmo essa tese, porém, não se sustenta. As repercussões dessa sobreposição da eficácia sobre a legalidade são preocupantes. Levada essa lógica ao limite, o Estado poderia se arrogar o direito de coibir homicídios chacinando assassinos. No entanto, ainda que, por uma incoerência bendita, não chegássemos a tanto, seria complicado não permitir desde já que outros países adotassem o mesmo critério, e poderíamos então imaginar um cenário onde tribunais chineses ou russos enviem determinações diretas a provedores brasileiros sob alegada violação de suas respectivas legislações digitais...
Portanto, o problema essencial dessa abordagem é que, sob o pretexto de punir condutas consideradas ilícitas, abre-se mão das garantias processuais e dos canais jurídicos competentes. A internet de fato desafia a territorialidade clássica, mas isso não legitima Estados a subverterem os meios legais em nome da jurisdição sem fronteiras. Se há necessidade de ampliação da cooperação internacional no âmbito cibernético, que isso se faça por vias normativamente consistentes e não por estratagemas que, no fim, mais se aproximam de um dolo mau do que de um avanço institucional.