A Pureza do Direito em Questão
É frequente o alerta contra a contaminação do direito pela moral, e há um fundo de verdade nisso. Como vimos, a leitura irônica do brocardo fiat justitia, pereat mundus (faça a justiça, e pereça o mundo) expressa bem que se deve evitar o risco da tentativa de se aperfeiçoar moralmente os cidadãos por meio da norma jurídica, pois tal excesso poderia ser contraproducente. Contudo, é igualmente imperativo advertir contra outra ameaça: a politização do direito.
O propósito deste miniensaio é estimar o impacto das preferências partidárias de alguns ministros do STF nas condenações relacionadas aos atos de 8 de janeiro. Para tanto, propõe-se um exercício de abstração: remover do problema os elementos políticos e averiguar qual seria, então, a decisão do Supremo. Essa depuração intelectual permite vislumbrar uma solução desprovida de paixões ideológicas e alheia às simpatias e antipatias despertadas pelo contexto histórico.
Contra essa metodologia, poder-se-ia argumentar que os tipos penais em questão – como a abolição violenta do Estado Democrático de Direito e o golpe de Estado – possuem um componente político inextrincável e que desconsiderá-lo seria desfigurar a análise. A essa objeção, contudo, contrapõe-se um princípio fundamental: no direito penal, a reprovação de uma conduta não decorre de sua inclinação ideológica, mas de sua antissociabilidade objetiva do comportamento individual. Assim, ao julgar um suposto golpe de Estado, o que está em exame não é uma determinada concepção de bem comum, mas sim os meios empregados para promovê-la por cada um.
Para buscar um caso análogo que permita um exame isento de contaminações políticas, recorri a um fenômeno coletivo desprovido de viés ideológico: os rolezinhos. Esses eventos consistiram em reuniões espontâneas de adolescentes oriundos das periferias em shoppings de São Paulo e outras capitais. Ainda que, em sua maioria, pacíficos, os rolezinhos despertaram reações diversas da sociedade, muitas vezes contaminadas por preconceitos sociais. O que importa aqui, entretanto, é que tais manifestações, assim como a do 8 de janeiro, configuraram mobilizações coletivas, mas, à diferença, eram desprovidas de conteúdo político explícito. Portanto, fornecem um caso ideal para refletirmos, in abstracto, sobre as implicações penais da ação coletiva em si.
Agora, suponhamos que, no contexto dos rolezinhos, entre os adolescentes pacíficos houvesse indivíduos motivados por intenções ilícitas – furtar, roubar, depredar. A questão que se coloca é: aqueles que apenas participaram pacificamente da reunião poderiam ser responsabilizados pelo comportamento criminoso de terceiros infiltrados?
A resposta, a meu ver, é negativa. O tipo penal, por sua própria natureza restritiva, não pode ser elastecido para alcançar aqueles que, ao se reunirem licitamente, proporcionaram ocasião para a prática de crimes por outros. Tal ampliação afrontaria diretamente os princípios da legalidade penal e da individualização da pena e colocaria em risco a liberdade de expressão em que estivessem em jogo discursos políticos. Ainda que se admitisse que alguns participantes pacíficos dos rolezinhos tolerassem tacitamente a presença de indivíduos mal-intencionados, essa circunstância não poderia fundamentar sua condenação. Ninguém, exceto os agentes do Estado, tem o dever jurídico de coibir crimes.
Para reforçar esse ponto, recorramos a outra comparação com um caso caro ao próprio STF: responsabilizar cidadãos que se reúnem pacificamente dando ocasião a criminosos equivaleria a punir os organizadores da Marcha da Maconha pelos delitos de tráfico de drogas que tal manifestação eventualmente propiciasse. Se essa conclusão soa absurda, deveria parecer igualmente absurda a tentativa de criminalizar aqueles que, no 8 de janeiro, apenas se congregaram, sem terem participado da depredação ou de qualquer tentativa idônea de golpe. Essa distinção seria fundamental, mas não consta ainda que o STF tenha se pautado por ela.