Contra a Lógica da Caverna
A transmissão e aplicação do conhecimento em novos contextos são processos que enfrentam duas cruzes distintas: uma de natureza cognitiva, ligada à dificuldade de transferência do aprendizado entre, por exemplo, a sala de aula e a rua; e outra de ordem social, relacionada à resistência dos indivíduos e das estruturas coletivas às novas ideias. O mito da caverna, de Platão, é uma representação filosófica emblemática desses problemas. A partir desse mito, também se torna pertinente questionar se a autoridade, no sentido arendtiano, poderia minimizar o obstáculo social, ainda que não elimine a complexidade da transferência cognitiva.
A Transferência como Problema Cognitivo
A transferência do conhecimento ocorre quando um aprendizado
adquirido em um contexto precisa ser aplicado em outro. No âmbito da
cognição, esse problema foi formulado de maneira moderna por Edward Thorndike,
ao defender, com um pouco de exagero, que a transferência exige elementos idênticos entre as situações de
aprendizado e de aplicação. Entretanto, conforme apontado por outros pedagogos, a verdadeira transferência depende não apenas da semelhança
estrutural entre os contextos, mas também da capacidade de abstração e
generalização por parte do estudante e aplicador.
De qualquer maneira, em seu mito, Platão retrata essa adversidade quando o
prisioneiro libertado, ao retornar à caverna, cegado pela luz do sol, tem dificuldade em reencontrar-se
com as sombras. O que foi aprendido na claridade do mundo exterior não se traduz
automaticamente na lógica da caverna, e sua experiência anterior, em vez de
proporcionar um conhecimento direto e imediato, exige adaptação. Esse dilema
antecipa o problema moderno da transferência: o conhecimento adquirido em uma
realidade distinta requer uma reconfiguração cognitiva para ser efetivamente
aplicado em outro ambiente.
O Obstáculo Social à Aplicação do Conhecimento
Se a transferência do conhecimento já representa um desafio
em termos individuais e cognitivos, a resistência dos outros àquele que traz um
novo saber adiciona um obstáculo social que, a depender do ambiente onde se move o estudante, pode ser ainda mais difícil de superar. No mito
da caverna, essa resistência se manifesta no escárnio e na hostilidade dos
prisioneiros em relação ao ex-prisioneiro que tenta libertá-los, e chega às raias do assassinato. A
incompatibilidade entre o novo conhecimento e a sociedade estabelecida gera
uma reação tão estúpida quanto forte por parte dos demais habitantes da caverna, que
preferem manter suas concepções habituais a arriscar uma nova compreensão do
mundo.
Essa resistência é verifcável em diversas áreas do
conhecimento e na história da ciência. Na estrutura das
revoluções científicas, observamos que mudanças paradigmáticas são refreadas não apenas por dificuldades conceituais, mas também por forças
sociais e institucionais que sustentam o paradigma vigente. A mesma lógica pode
ser aplicada ao campo político e filosófico: aqueles que trazem novas ideias
frequentemente enfrentam perseguição, como o próprio Sócrates, condenado à morte
por "corromper a juventude".
A Redução do Obstáculo Social pela Autoridade
Hannah Arendt define autoridade como uma capacidade de
governar baseada em uma hierarquia pré-estabelecida, e não na coerção ou na
mera persuasão. Quando essa autoridade está presente e é capaz de novas ideias, o obstáculo social à
transmissão do conhecimento é reduzido, pois o novo é validado por
uma hierarquia que, fincando raízes na tradição, é previamente reconhecida.
Por exemplo, em uma sociedade onde a figura do professor tem
autoridade consolidada, sua capacidade de introduzir novos conceitos é muito
maior do que em uma sociedade onde a educação é constantemente deslegitimada. O
mesmo se aplica ao campo político: regimes baseados em
instituições respeitadas permitem inovações graduais, ao passo que sociedades
instáveis frequentemente rejeitam novos saberes.
No entanto, mesmo quando há autoridade, o problema da
transferência cognitiva permanece. Nenhuma estrutura hierárquica pode eliminar
completamente a necessidade de tradução, adaptação e reelaboração do
conhecimento para novos contextos. Assim, a autoridade poderia reduzir os conflitos
sociais, mas ainda não resolveria os desafios inerentes ao próprio processo de
aprendizado.
Uma Nota de Esperança
Mesmo no deserto moderno da autoridade, onde estruturas
hierárquicas tradicionais perderam sua força e onde a resistência social às melhorias é frequente, há esperança. Quanto mais humanizado, estruturado e
fundamentado for um conhecimento, menos ele sofrerá com as dificuldades de transferência
e aceitação social. A história das ciências e das ideias mostra que, ainda que
os novos conhecimentos se batam contra barreiras, eles tendem a prevalecer quando
são solidamente construídos e adequadamente comunicados. A figura do filósofo
que retorna à caverna ainda é o símbolo da capacidade
humana de iluminar o mundo diante dos maiores desafios, ainda que à custa de sangue.