Entre a Ordem e o Caos
O brocardo latino fiat iustitia, pereat mundus pode ser lido como uma exortação à aplicação irrestrita da justiça, mesmo que o mundo sucumba diante de seu rigor. No entanto, uma leitura irônica, sugerida pelo bom senso, indica precisamente o oposto: a necessidade de temperar a justiça para evitar que a ordem do mundo pereça. A adoção de um critério absoluto na administração do direito natural pode resultar na destruição da própria estrutura social que se busca preservar. Daí surge a noção de tolerância, não como uma abdicação de princípios, mas como uma moderação estratégica da justiça para evitar males maiores ou viabilizar bens que de outra forma seriam impossíveis.
A tolerância, nesse sentido, não é sinônimo de aprovação, mas de pragmatismo. Em muitos casos, evitar a coerção direta sobre determinadas práticas permite a manutenção de um equilíbrio social mais amplo. Tomemos o caso da liberdade ampla de expressão nas redes sociais e outros espaços públicos, que deveria ser permitida, quando mais não fosse, pela tolerância. A censura poderia, sem dúvida, mitigar ou até eliminar os danos da calúnia e da difamação, mas ao custo de suprimir a espontaneidade e a liberdade que caracterizam o debate público. A aplicação excessivamente zelosa da justiça nesse campo poderia gerar um ambiente de repressão intelectual incompatível com a dinamicidade própria da vida democrática.
Outro exemplo, mais claro, é a tolerância à prostituição. Sob a perspectiva de uma moral tradicional acrítica, essa prática poderia ser combatida de maneira inflexível. No entanto, a interdição absoluta da prostituição tende a provocar efeitos colaterais ainda mais danosos, como a proliferação de redes clandestinas, a corrupção policial e a marginalização social extrema das pessoas envolvidas. Mais do que isso, como notou Santo Agostinho, suprimir essa atividade poderia também levar a luxúria a perpassar estratos sociais que, de outro modo, não seriam diretamente afetados.
Dessa forma, a prática da tolerância, enquanto equilíbrio entre justiça e pragmatismo, é tão necessária na pólis quanto o banheiro numa casa. No entanto, essa moderação não pode ser confundida com a elevação do sanitário à sala-de-estar. Nos nossos exemplos, não se deve confundir o palavreado efêmero das redes sociais ou do botequim com um discurso filosófico, assim como não se deve equiparar a prostituição a um trabalho digno, no sentido aristotélico de uma atividade ordenada ao bem comum. A análise de Hannah Arendt sobre as pseudocoisas alerta também para os perigos de transformar categorias táticas de tolerância em realidades substanciais. A falha em perceber essa distinção levaria à inversão da hierarquia natural das coisas, onde as sombras seriam tomadas por luzes, com consequências imprevisíveis para a ordem social e política. Tolerar não é dignificar.