Fraternidade e Rivalidade
"Mais valem os golpes da caridade que as carícias do orgulho." (Santo Agostinho)
São Jerônimo, doutor da Igreja e tradutor das Escrituras, destacou-se por uma erudição sem paralelo. Seus escritos, repletos de reflexões agudas, contêm germes de ideias que, ao longo dos séculos, desdobraram-se em complexas elaborações teológicas. Como uma terra fecunda onde Deus semeou princípios, sua obra se apresenta a nós hoje como um campo de árvores crescidas, cujos frutos cabe-nos colher e saborear.
Dentre essas ideias, uma particularmente instigante é a concepção do diabo como nosso próximo. Na Expositio Evangeliorum, Jerônimo, ao interpretar alegoricamente a narrativa de Esaú e Jacó, afirma que "Esaú significa o diabo, Jacó significa Cristo, que o venceu e suplantou três vezes. Assim, nós também devemos suplantar nosso irmão, o diabo, em três aspectos: no pensamento, na palavra e na ação." O negrito é meu, e serve para destacar que a designação do diabo como "irmão" parece estranha e exige uma análise acurada.
Sob uma perspectiva ontológica, o diabo, sendo um espírito angélico, pertence a uma ordem distinta da humana. Nesse sentido, essa fraternidade parece, à primeira vista, dissonante. No entanto, a afirmação de Jerônimo não deve ser lida como uma categorização estritamente metafísica, mas antes como uma formulação que evidencia uma certa relação de proximidade entre o homem e o diabo. É a natureza dessa proximidade que gostaria de precisar aqui.
Uma primeira justificativa para essa irmandade reside, segundo o próprio Jerônimo, na origem comum de ambas as criaturas em Deus Criador. Essa consideração, contudo, é ainda demasiado ampla. Até a lua, nesse sentido, poderia ser dita nossa irmã, como a trataria com carinho São Francisco de Assis mais tarde. De fato, essa fraternidade do homem com o diabo é ainda um tanto remota, sendo possível estreitá-la mais. O vínculo se torna mais próximo quando analisamos a dinâmica do desejo que opera tanto no homem quanto no diabo. Ambos, ainda que em direções opostas, aspiram a converter o mundo. O diabo busca conduzi-lo à perdição, enquanto o homem santo pretende elevá-lo a Deus. Essa tensão, em que dois agentes se disputam um mesmo objeto – o destino do mundo –, insere-se perfeitamente na teoria girardiana do desejo mimético, segundo a qual a rivalidade nasce não da diferença absoluta, mas da similitude nos anseios.
Sob essa ótica, uma leitura atualizada do trecho de Jerônimo não pode focar na ontologia do demônio, mas deve antes ver o seu objeto de desejo, que é comum com os homens. Esse foco revela, pois, que há uma rivalidade entre nós e o demônio por um bem escasso e finito, que é o mundo. Note-se, porém, que Jerônimo fala em reconhecer o diabo como irmão, e não em considerar o irmão como diabo.
Com efeito, o irmão não é um diabo, pelo contrário. Esse princípio evidente, porém, é de árdua aplicação prática e está sujeito a incompreensões. Uma visão fraca da fraternidade, por exemplo, poderia sugerir que ela exclui toda forma de rivalidade. No entanto, até mesmo entre os santos há uma competição legítima, semelhante àquela dos atletas que correm na arena da imagem paulina, buscando atingir antes dos outros o céu, isto é, a perfeição. A distinção essencial reside na natureza do bem disputado: enquanto a rivalidade com o diabo se dá por um bem escasso e finito – o domínio sobre o mundo –, a competição entre santos ocorre em torno de um bem que é essencialmente difusivo e multiplicador, a saber, a graça e a santidade. O santos não competem para derrotar o outro, mas para o exaltar.
Essa diferença crucial tem repercussões na vida interna da Igreja. A busca por posições de liderança dentro da estrutura eclesiástica, quando orientada pelo desejo de melhor servir a Deus e ao próximo, não apenas é legítima, mas louvável. O carreirismo, por outro lado, a busca do poder pelo poder, é sempre ruim, e lança os competidores numa rivalidade diabólica, sendo um caricatura daquela busca por levar adiante uma concepção da caridade que se julga, em boa fé, mais de acordo com Evangelho. E não só a luta pelo poder eclesiástico, mas também a renúncia a essa mesma luta deve ser entendida também na chave dessa fraternidade humana energizada pela competição. Quando o Papa Bento XVI renuncia, por exemplo, não há aí um jogar a toalha, mas uma busca por uma posição estratégica nessa guerra de caridade, uma posição onde ele pudesse servir com mais eficácia a seus irmãos.