Inconstitucionalidades Materiais Supervenientes


No ordenamento jurídico brasileiro, não existe a figura da inconstitucionalidade formal superveniente. Isso significa que uma norma, validamente editada segundo o processo legislativo vigente à época de sua promulgação, não pode posteriormente se tornar formalmente inconstitucional em virtude de mudanças no ordenamento jurídico. O princípio da segurança jurídica impede que uma lei seja retroativamente invalidada por razões formais, já que sua elaboração observou os requisitos então exigidos pela Constituição. A sua recepção se dá com o status que a nova Constituição atribui à sua matéria. 

Por outro lado, a inconstitucionalidade material por incompatibilidade com uma Constituição superveniente é uma questão debatida na doutrina. Essa incompatibilidade pode ser resolvida de duas maneiras: pela revogação da norma anterior ou por sua declaração de inconstitucionalidade. A meu ver, adotando o argumento decisivo de Barroso em obra de 2011, a solução correta é a da revogação. Isso porque, à época da promulgação da Constituição de 1988, o entendimento prevalente era o de que normas infraconstitucionais incompatíveis com a nova Constituição seriam automaticamente revogadas. Se o constituinte de 1988 quisesse modificar essa lógica, deveria tê-lo feito de forma expressa. A relevância prática dessa solução é evidente: ao se entender que a norma anterior foi revogada e não declarada inconstitucional, não há possibilidade de controle direto de constitucionalidade fora do âmbito de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

Um exemplo simples de inconstitucionalidade material por incompatibilidade com a Constituição superveniente seria uma antiga lei que permitisse a pena de banimento para determinados crimes. Ainda que essa lei fosse válida à época de sua edição, a Constituição de 1988 proibiu expressamente a pena de banimento (art. 5º, XLVII, "d"), tornando essa norma incompatível com a nova ordem constitucional. Como consequência, essa lei não poderia mais ser aplicada, pois estaria tacitamente revogada pela nova Constituição.

Entretanto, há casos frequentemente tratados como de inconstitucionalidade superveniente que possuem uma natureza distinta. Um exemplo é a questão do amianto crisotila. Embora a proibição de seu uso tenha sido considerada uma consequência de inconstitucionalidade superveniente, a situação não se enquadra no modelo clássico de incompatibilidade com uma Constituição posterior. O que ocorreu, na realidade, foi uma mudança no conhecimento científico acerca dos riscos do amianto crisotila, tornando inconcebível a ideia de seu uso seguro. Ou seja, a inconstitucionalidade superveniente aqui não decorreu de uma alteração normativa superior, mas sim de uma nova compreensão fática que tornou insustentável a permanência da norma permissiva.

Em suma, a inconstitucionalidade material superveniente, isto é, aquela não congênita à norma sob juízo, pode ocorrer por dois tipos de incompatibilidade: ou por uma mudança normativa superior, ou por uma alteração nos fatos ou na concepção científica destes. A distinção entre essas duas situações é fundamental para a correta compreensão e aplicação do fenômeno no direito brasileiro.

Por fim, um caso embaralhado e curioso, a propósito, talvez esteja no art. 240 da CLT. Essa norma previa que a duração do trabalho dos ferroviários poderia ser excepcionalmente elevada a qualquer número de horas em casos de urgência ou de acidente. O âmbito de incidência dessa dispositivo, salvo melhor juízo, foi um Brasil onde o transporte ferroviário era muitas vezes imprescindível, dada a falta de uma malha rodoviária ampla. Em um contexto no qual alimentos e medicamentos dependiam dos trens para chegar a determinadas localidades, o sacrifício individual de um ferroviário poderia ser justificado pelo bem coletivo. 

Contudo, os fatos hoje são outros: o transporte ferroviário perdeu parte de sua centralidade, com rodovias e outros modais assumindo papel preponderante na logística nacional. Além da mudança fática, houve também uma transformação normativa substancial. A Constituição de 1937, vigente à época da CLT, permitia que a lei ampliasse a duração diário do trabalho sem um limite explícito (art. 137, I). Já a Constituição de 1988 fixou a jornada máxima de 8 horas diárias e 44 semanais, só admitindo exceções para mais se compensáveis (art. 7º, XIII). Diante dessas modificações, a norma celetista tornou-se materialmente inconstitucional por uma superveniência dupla, que combina a superação dos pressupostos fáticos de sua razoabilidade com uma nova moldura constitucional, que não mais admite tal flexibilidade extrema da jornada.

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