O Espaço do Letramento
Sem dúvida, a sistematização e a ordenação do letramento tal qual ensinado na Antiguidade e na Idade Média representam uma iniciativa de elevado valor. Se conduzida com rigor, essa abordagem tem o potencial de fomentar o desenvolvimento intelectual por meio da identificação precisa de lacunas formativas e da implementação de mecanismos de aprimoramento. Em consonância com as pesquisas contemporâneas em neurociência cognitiva e pedagogia, um curso que siga essa estrutura pode servir como um poderoso instrumento para a prática deliberada, conceito delineado no livro Peak, escrito por Anders Ericsson e altamente recomendável.
Outro mérito de uma abordagem sistemática e ordenada pode residir na possibilidade de oferecer uma instrução mais aprofundada do que a encontrada em muitos cursos online de procedência duvidosa. Quando ministrada por indivíduos com sólida formação acadêmica, a clareza expositiva e o rigor metodológico tendem a ser mais elevados, possibilitando uma experiência formativa mais robusta e sofisticada.
Ademais, um modelo educacional verdadeiramente eficaz, que tenha como fim último a filosofia, deveria contemplar a dialética inerente ao desenvolvimento cognitivo. O aprimoramento intelectual requer não apenas avaliações formais, mas também o embate das próprias convicções com perspectivas alheias. O confronto intelectual não é um mero adereço do aprendizado, mas um requisito essencial para a maturação do pensamento e para a prevenção de cristalizações autoritárias.
Nesse sentido, o grande risco de modelos educativos fiéis a uma tradição não mais vigente, que se desenvolvem à margem das instituições acadêmicas correntes, é a criação de esferas herméticas de pensamento. Um curso que se dissocia do debate institucionalizado e se configura como um universo paralelo corre o perigo de converter-se em um projeto autocentrado, que não conversa com o conhecimento consolidado. Essa desconexão representa um obstáculo para aqueles que almejam uma formação que transcenda a esfera subjetiva e se traduza em competências aplicáveis à vida intelectual e acadêmica.
Numa dimensão existencial, essa tendência ao isolamento pode ainda fomentar uma vivência equivocada do saber, onde o conhecimento é um fator de alienação em vez de integração. No entanto, a verdadeira erudição não opera como um elemento de exclusão do sujeito que conhece, mas sim como um vetor de diálogo. A história intelectual e a filosofia demonstram amplamente que o saber genuíno não é um instrumento de segregação, mas um mecanismo de ampliação do horizonte discursivo e de engajamento com pensamentos diferentes.
Sócrates, um símbolo sempre vivo, prefere morrer na cidade a fugir vivo para o campo. Essa atitude é justamente a oposta à desse letramento paralelo. Interessa notar, nesse diapasão, que a cidade e as instituições existentes devem ser veneradas pelos sábios mesmo quando cobram o seu sangue, e que, em última análise, não é próprio dos mestres criar uma bolha onde seus ensinamentos possam ser degustados em paz por um grupo de concordantes. Tal localização da filosofia no centro quente do mundo fica clara nessa passagem de Críton, em que Sócrates, personificando as leis da pólis, explicita, com uma ironia deliciosa, qual seria um argumento decisivo delas contra a fuga dele:
- Ou será que sua sabedoria é tal que você não percebe que sua pátria é mais preciosa, mais digna de reverência, mais sagrada e mais estimada entre os deuses e entre os homens de entendimento do que sua mãe, seu pai e todos os seus antepassados? E que você deve demonstrar a ela mais reverência, obediência e humildade quando ela está irritada do que ao seu próprio pai? E que deve ou persuadi-la pelo argumento, ou fazer tudo o que ela ordena e suportar a pena - se ela ordenar que você sofra - em silêncio? E se ela mandar que você seja açoitado, preso, ou que vá à guerra para ser ferido ou morto, sua vontade deve ser cumprida, pois isso é o correto, e você não deve ceder, recuar ou abandonar seu posto, seja na guerra, no tribunal ou em qualquer outro lugar?"
Portanto, a fuga física ou memo só do debate não é um caminho. A escolha de um percurso educativo deve pautar-se não apenas pelo rigor do conteúdo, mas também pela sua capacidade de integrar o aprendiz ao universo acadêmico e profissional mais denso. A finalidade última da educação não deve ser a mera construção diletante de um espaço intelectual como uma casinha no campo. A meu ver, deve antes ser a capacitação do indivíduo para, no meio da pressa, da gente e do barulho, transitar criticamente entre diferentes esferas do conhecimento, aguçando sua potência de contribuir para os debates de seu tempo.