O Sofisma da Função e a Legitimação do Equívoco


Em O Que É Autoridade, Hannah Arendt introduz um conceito crítico de profunda perspicácia: o de pseudocoisas. Trata-se da confusão categorial entre a natureza ontológica de um objeto e a função que ele exerce. Assim, quando um ente desempenha um papel semelhante ao de outro, o pragmatismo contemporâneo — ou, talvez, sua preguiça intelectual — tende a obliterar distinções fundamentais. Nesse sentido e principalmente, Arendt critica a confusão entre autoridade e violência: ambas produzem obediência, mas o fazem por vias radicalmente distintas. A redução funcionalista não apenas inviabiliza a inteligibilidade dos conceitos, mas também serve como artifício ideológico para justificar distorções políticas e sociais.

A relevância do conceito de pseudocoisas, contudo, ultrapassa a esfera da filosofia política. Ele permite iluminar diversas manifestações contemporâneas nas quais há um esforço deliberado para revestir realidades dissonantes com nomenclaturas mais palatáveis, promovendo, assim, uma falsificação ontológica de fenômenos sociais.

A Prostituição como Trabalho

A tentativa de enquadrar a prostituição como "trabalho" exemplifica de maneira paradigmática o conceito de pseudocoisas. O argumento central sustenta que, dado que a prostituição possibilita a subsistência econômica de seus praticantes, ela deveria ser reconhecida como uma ocupação legítima. Contudo, tal raciocínio ignora que a função de prover meios de vida não confere automaticamente a uma atividade a dignidade inerente ao conceito de trabalho. Se assim fosse, o tráfico de entorpecentes e a extorsão também poderiam ser reabilitados como atividades laborais, uma vez que igualmente garantem renda a seus agentes.

A confusão entre trabalho e exploração se intensifica quando a miséria é utilizada como justificativa moral para a normalização de práticas que violam a integridade e a autodeterminação do indivíduo. A transformação da necessidade em argumento normativo constitui um expediente retórico que encobre, em vez de solucionar, as contradições subjacentes à questão.

Ultraprocessados Inflados e Chicletes como Alimentos

A indústria alimentícia oferece um outro campo fértil para a proliferação das pseudocoisas. Se algo promove saciedade momentânea, isso basta para qualificá-lo como alimento? Sob essa lógica, chicletes e produtos ultraprocessados inflados de ar seriam equivalentes a refeições nutricionalmente equilibradas. O erro conceitual reside na suposição de que a função de enganar a fome equivale à propriedade de nutrir.

A engenharia alimentar moderna exacerba essa confusão, criando produtos cuja única função é produzir uma ilusão temporária de satisfação. O que se observa, nesse contexto, não é apenas a reconfiguração dos hábitos alimentares, mas a institucionalização de uma fraude semântica: denominar como "alimento" aquilo que, na melhor das hipóteses, simula a saciedade.

A Legitimação Estatal das Pseudocoisas

O Estado, longe de ser um agente neutralizador das pseudocoisas, frequentemente desempenha o papel de instância reguladora e legitimadora de tais falsificações conceituais. Dois exemplos desse fenômeno são o comércio de rins no Irã, onde a compra de órgãos é monopolizada pelo governo, e a exploração estatal dos jogos de azar, que por décadas permaneceu sob o controle exclusivo de entes estatais.

Em ambos os casos, o Estado promove a ilusão de legitimidade e controle ao se apresentar como gestor exclusivo da atividade. No caso da comercialização de órgãos, a regulamentação estatal cria uma aparência de transação mercantil quando, na realidade, trata-se da monetização do desespero humano. Quanto aos jogos de azar, a tentativa de normalização por meio da chancela estatal mascara sua natureza essencialmente predatória: longe de constituírem um jogo no sentido aristotélico de uma prática lúdica e edificante, são dispositivos estruturados para capitalizar sobre a vulnerabilidade e a ilusão de mobilidade social.

Nem Comércio, Nem Jogo

No exame final, nem o comércio de rins pode ser tratado como um mercado legítimo — visto que incide sobre um bem inalienável e existencialmente indisponível — nem os jogos de azar podem ser considerados jogos no sentido pleno do termo, pois não induzem prazer lúdico, mas sim um estado patológico de compulsão que frequentemente desestabiliza indivíduos e famílias. É o caso urgente de questionar se, ao invés de o Estado legitimar a pseudocoisa, a pseudocoisa não deslegitimaria o Estado.

Com o auxílio de Arendt, pois, aprendemos que o mundo contemporâneo não apenas gera pseudocoisas, mas se especializa em sua legitimação institucional. Esse processo é conduzido por discursos pragmáticos e estratégias de normalização que dissolvem as fronteiras entre função e essência. Para evitar a armadilha das pseudocoisas, é imperativo cultivar um pensamento crítico em meio a um ambiente ingênuo,  que recuse as distorções conceituais impostas por conveniências políticas e econômicas. Embora não seja impossível, tampouco será fácil. Como nos lembra o mito da caverna, a verdade raramente é bem recebida por aqueles que se habituaram à segurança das sombras.

Mais Populares