Da Teoria à Prática
Já vimos que Platão, ao narrar a ascensão e o retorno do prisioneiro na Alegoria da Caverna, antecipa, sob roupagem mítica, o problema pedagógico da transferência. O modo desajeitado como o filósofo, após contemplar o mundo das formas, regressa à caverna ilustra o desafio de transpor o conhecimento especulativo para o domínio prático. Esse problema se manifesta sempre que se contrapõem a especulação e sua prática correspondente, sendo nosso objetivo aqui escalonar que tipos de conhecimento especulativo ensejam tal dilema e em que medida.
Para clarificar a questão, recorreremos à distinção tomista entre os diversos graus de especulação e prática. Antes, contudo, convém conceituar o que são os operabilia, termo empregado por São Tomás para designar objetos ou ações que podem ser realizados por seres humanos. Steven Jensen (que me foi recomendado pelo caro Fred Bonaldo) exemplifica tal conceito ao considerar tanto um carro quanto um movimento de xadrez como operabilia; ambos são produtos da atividade humana e não realidades autônomas da natureza.
Posto isso, podemos delinear os níveis que vão da especulação pura à prática pura. O primeiro nível de especulação trata de objetos que não são operabilia, como, principalmente, Deus, mas também corpos celestes como a Lua, Marte ou Saturno. A própria natureza do planeta Terra, considerada em seu todo, não é um operabile, embora possua aspectos mais operáveis, dando ensejo, nessa medida, a disciplinas como o Direito Ambiental.
O segundo nível de especulação diz respeito à descrição de um operabile sem qualquer preocupação com sua efetiva feitura. São Tomás exemplifica tal nível com o arquiteto que conhece uma casa já pronta, sem intenção de reproduzi-la ou alterá-la. Há aqui um saber especulativo sobre algo fabricável, mas sem vinculação direta com sua produção.
Descendo na escala especulativa, o terceiro nível trata de um operabile enquanto passível de ser feito, ainda que não haja intenção concreta de realizá-lo. O arquiteto, nesse grau, não apenas conhece a casa já edificada, mas reflete sobre os modos de construí-la, ponderando técnicas e materiais adequados. Aqui, a especulação se aproxima da prática ao incorporar preocupações com a execução.
O limite extremo da prática e ponto zero da especulação ocorre quando o arquiteto resolve construir a casa em questão. Trata-se do momento em que a elaboração mental cede integralmente à execução concreta, alcançando-se a culminância da práxis.
Mesmo no mais alto grau de especulação, porém, o problema da transferência se impõe. Conhecer a Deus especulativamente tem implicações práticas, ainda que seja apenas o desejo de conhecê-lo ainda mais profundamente para, v.g., a predicar-lhe ou não uma ligação com o mundo atual. Todavia, óbvio o problema da transferência se torna mais agudo à medida que se conjuga um conhecimento especulativo com o máximo grau de prática.
Nesse âmbito, o direito apresenta uma questão fascinante. Seria ele um mero conhecimento prático ou derivaria de uma especulação mais profunda? A meu ver, a ciência jurídica não é descolada do especulativo; ela se ancora, no mínimo, numa teoria sobre o homem, sobre a justiça, sobre a organização social e sobre o que é a convivência. Mas essa é uma discussão que merece ser retomada em outra oportunidade.