Positivismo Supérstite: Um Instrumento do Laicismo


O positivismo jurídico, ao menos em suas manifestações pós-guerras, não se caracteriza primordialmente por um arcabouço teórico sobre a natureza do direito, mas sim pela vocação quase messiânica de se contrapor ao jusnaturalismo. Enquanto este último busca articular o direito a um conteúdo mais ou menos moral, aquele se satisfaz em repelir essa conexão com um ar de alívio metodológico, distinguindo, quando necessário, entre moralidade público-secular de conteúdo vago e a privado-religiosa apenas para descartar essa última. Poucas operações intelectuais seriam tão libertadoras, nesse sentido, quanto expurgar da interpretação jurídica qualquer vestígio de normatividade transcendente – um espaço depurado, onde normas subsistem independentemente de justificações metafísicas ou implicações ético-políticas.

No âmbito acadêmico, essa postura se traduz em uma ascese intelectual peculiar. A elite docente do Direito, em sua maioria, assume como dever epistemológico evitar manifestações sobre temas controversos de política pública. Questões como o começo da vida ou a qualificação jurídica da união entre pessoas do mesmo sexo são deliberadamente situadas fora do escopo da análise científica. O professor, concebido não como um agente de transformação social, mas como um guardião da disciplina jurídica dentro da autonomia universitária, atribui-se a função exclusiva de promover o progresso da ciência, abstendo-se de qualquer interferência que desborde de uma apreciação formal. Esse compromisso metodológico confere aos textos jurídicos um estatuto de cientificidade. Em lhanas palavras, a academia jurídica se legitima pela aparência de neutralidade.

Não deve ser difícil encontrar, por exemplo, trabalhos acadêmicos de ponta que demonstrem, com rigor lógico, a incongruência entre a criminalização do aborto e determinados dispositivos constitucionais e tratados internacionais, mas sem jamais afirmar, de maneira categórica, a sua moralidade ou imoralidade. A pesquisa jurídica, no paradigma positivista, deve manter-se imune a julgamentos éticos. Um texto que resista à contaminação por juízos morais adquire, por essa lógica, um prestígio científico inquestionável.

Contudo, não é difícil perceber que essa suposta neutralidade não é senão um disfarce para um projeto político bem definido. O positivismo, ao consolidar a separação entre direito e a moral de verdade, constitui um instrumento de salvaguarda da democracia liberal em sua vertente mais laicista: aquela em que a neutralidade estatal não é apenas um princípio regulador, mas um mecanismo de blindagem contra influxos normativos oriundos de tradições religiosas. Nessa perspectiva, restringir a discricionariedade dos juristas para incorporação de considerações morais não é meramente uma estratégia metodológica, mas uma necessidade imperiosa para evitar que o direito se converta em arena de disputas éticas atávicas. A técnica jurídica, depurada de elementos exógenos, emerge como um bastião contra as pressões religiosas, que poderiam "distorcer" os critérios decisórios racionais. 

A curiosidade maior, no entanto, reside no fato de que essa função do positivismo o torna virtualmente imune a críticas teóricas e a tragédias históricas como a da democracia no nazismo. Qualquer tentativa de questionamento de sua neutralidade metodológica pode ser prontamente desqualificada como uma incursão indevida no domínio das convicções extrajurídicas. O positivista sempre redivivo, com um sorriso de condescendência científica, reafirma a pureza de seu método e relega seus opositores ao campo da irracionalidade dogmática. Dessa maneira, o positivismo jurídico se perpetua, triunfante, como guardião de uma ciência que, sob o pretexto da objetividade, relega à penumbra os embates normativos fundamentais – uma façanha que, por motivos óbvios, jamais se reconhece como tal.

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