Ética da Inclusão
Há pouco deparei-me com uma leitura instigante de James Alison acerca da passagem joanina da cura do cego de nascença (Jo 9). Em sua análise, Alison desloca o foco do evento miraculoso em si para o debate teológico subsequente, especialmente a enunciação conclusiva nos versículos 39 a 41: "Et dixit Iesus: ´In iudicium ego in hunc mundum veni, ut, qui non vident, videant, et, qui vident, caeci fiant´.
Audierunt haec ex pharisaeis, qui cum ipso erant, et dixerunt ei: ´Numquid et nos caeci sumus?´.
Dixit eis Iesus: ´Si caeci essetis, non haberetis peccatum. Nunc vero dicitis: -Videmus!; peccatum vestrum manet ´”.
("E Jesus disse: ´Eu vim a este mundo para um juízo [ou discernimento]: para que os que não veem, vejam; e os que veem, se tornem cegos.´
Alguns fariseus que estavam com ele ouviram isso e lhe disseram: ´Acaso também nós somos cegos?´
Jesus lhes respondeu: ´Se fôsseis cegos, não teríeis pecado. Mas agora dizeis: - Vemos! — por isso, o vosso pecado permanece.´")
Tal passagem, argumenta Alison, permanece enigmática se isolada do desenvolvimento narrativo do milagre. A chave hermenêutica, na linha do nosso autor, reside no reconhecimento de que Cristo figura não apenas como taumaturgo, mas também como paradigma da vítima na cruz, prefigurada na exclusão do cego por parte dos fariseus.
Esse homem, antes alijado dos ritos de Israel por conta de sua condição, é reintroduzido na esfera cultual pela ativação dos seus olhos — uma restauração que o habilita, inclusive, à plena participação litúrgica. Paradoxalmente, essa reintegração religiosa converte-se rapidamente em nova exclusão: seu testemunho em favor de Jesus colide com a teologia hegemônica dos fariseus, e seu reconhecimento do Cristo como enviado de Deus é o motivo último de sua expulsão. A narrativa torna-se, portanto, uma elaboração densa sobre inclusão e exclusão, tendo Cristo como eixo de reconfiguração.
A solução do enigma da passagem citada acima se dá como reversão radical das posições: o excluído — Cristo — revela-se o verdadeiro juiz; os incluídos, os fariseus, tornam-se os julgados. Nesse deslocamento residiria a subversão própria do evangelho: o pecado seria reconceituado não como transgressão formal, mas como cegueira espiritual — uma participação acrítica e autolegitimadora no mecanismo sacrificial que sustenta uma certa ordem social e religiosa. A clivagem moral fundamental deixaria de ser entre o bem e o mal, a virtude e o vício, ou entre o lícito e o ilícito, para situar-se entre os que veem e o evitam e os que permanecem cegos e participam do real funcionamento do mecanismo sacrificial. Nesse drama, todos nos reencontramos: há em nós tanto a rigidez dos fariseus quanto a abertura do cego curado.
Cristo, pois, enquanto figura exemplar, é espelhado naquele que, curado para que nele se manifestem as obras de Deus, é repelido pela comunidade religiosa. Tal figura, vimos, aponta inexoravelmente para a cruz, em que o inocente, justo e perfeito é executado como malfeitor. No entanto - e isso fica claro em abordagens girardianas em geral - essa morte deve ser compreendida à luz de uma distinção fundamental: Cristo não é vítima propiciatória exigida pelo Pai para satisfazer sua ira, mas é entregue por uma humanidade cativa ao "príncipe deste mundo" — uma catividade que o Pai, em sua presciência, incorpora ao plano redentor de maneira genial.
A obediência filial de Jesus é, nesse quadro, uma adesão livre ao projeto divino de resgate, não uma submissão a um Pai sedento de sangue. A cruz é, antes, a forma como Deus penetra no interior do sistema de exclusão para dissolvê-lo desde dentro. Nesse sentido, a vitória pascal, que comemoramos há pouco, é o ponto de inflexão definitivo: o excluído ressurge como plenamente incluído no seio da Trindade, e essa inclusão se torna força de salvação.
Resta, porém, uma pergunta prática e existencial: como participar dessa inclusão fora, ainda que sempre a partir, da fonte de graça dos sacramentos? A meu ver, essa participação continua a se dar fundamentalmente por meio de uma vida virtuosa, por mais que esta possa e até deva ser reinterpretada nos termos de uma ética inclusiva. Tal virtude, não mais entendida só como performance moral isolada, mas acrescida da disposição relacional para romper com as lógicas excludentes, torna-se sinal concreto da assimilação ao Cristo. A santidade moral, nesse sentido, configura-se também como abertura ao outro enquanto cidadão e colaborador da pólis, recusa da violência mimética e compromisso com a misericórdia.
Minha reserva quanto à proposta de Alison não está nessa sua contribuição para a dimensão política ou secular do cristianismo, a qual considero fecunda e legítima. Minha inquietação está na possibilidade de que uma ênfase desproporcional na inclusão enquanto critério definidor possa atenuar a tensão espiritual inerente à vida cristã. A cruz é partilhada por ambos os ladrões, mas há aí uma assimetria decisiva: a abertura penitente de um e a recusa obstinada do outro. A virtude cristã não se esgota na acolhida e na inclusão social de todos; ela exige conversão pessoal, discernimento e uma luta moral contínua em que transpareça a sinceridade da penitência provocada pelo encontro com Cristo. A graça da inclusão é dom, mas também conduz a um caminho humano de transfiguração.