Amor e Identidade


Há uma pessoa que me é cara porque é muito querida à minha noiva. Num lance típico de mimese, o desejo não nasceu espontaneamente em mim: ele foi mediado por um terceiro. Assim, pelo reflexo do afeto de minha noiva, aprendi a nutrir amizade por essa outra pessoa. Ora, essa nossa amiga sofre demais em razão de um término amoroso. E, para compreender a sua dor, convém adotar a advertência de Oughourlian: quando investigamos o sofrimento humano, não basta perguntar de que a pessoa padece; é preciso indagar de quem ela padece.

Em termos girardianos, essa indagação é inevitável porque não somos proprietários de nossos desejos — e, por consequência, tampouco somos plenamente proprietários de nossa identidade. O desejo humano é essencialmente mimético: desejamos o que outro deseja ou o que outro nos apresenta como desejável. Através da mediação de modelos, moldamos, sem necessariamente o perceber, nossas aspirações, gostos, valores e, em última análise, o próprio núcleo de quem acreditamos ser. A identidade pessoal, tão celebrada na modernidade como uma conquista individual, é, para Girard, uma obra profundamente coletiva — uma tapeçaria de desejos tecidos em torno de outros.

Essa vulnerabilidade, no entanto, não se manifesta igualmente em todas as formas de desejo. Em muitos casos — como na busca por um cargo, por reconhecimento profissional ou por bens materiais — o caráter mimético do desejo não chega a colocar em risco a nossa identidade de maneira direta. É no campo do amor romântico, sobretudo, que essa periclitação identitária se torna mais visível e dramática. Há um certo aspecto de trágico nisso: enquanto no mercado de trabalho um fracasso pode ser administrado com um pragmatismo quase esportivo, na arena amorosa, o poeta, privado da amada, se vê tentado a destruir a própria vida. A perda da pessoa desejada equivale, na sua experiência interna, à aniquilação do próprio ser.

Ora, essa aniquilação não nasce no momento da perda, mas é fruto de uma longa deformação do desejo. Quem tira a própria vida, efetiva ou simbolicamente, por amor não é vítima apenas de uma paixão intensa, mas de uma má formação do desejo muito anterior. Tentar demover a amante desesperada dizendo que o amado "não merece" tanto ou que "não vale a pena" é como oferecer uma boia depois que o afogado já tragou a última golfada de ar. Aos seus olhos, o amado não era apenas digno de amor: ele era o centro de gravidade do próprio eu. A resposta mais curativa não é, pois, superficialmente dissuadir o sacrifício de si, ou pelo menos não só. É necessário compreender e arrancar a raiz psicológica desse erro do desejo.

Se o desejo é triangular — sempre mediado —, podemos pensar que, antes da dependência emocional explícita, houve um movimento mais sutil e perigoso: o outro se tornou modelo de um objeto vital, a saber, o próprio valor de si mesmo. A ex-namorada não investiu apenas afeto no relacionamento; ela ofereceu a própria identidade. Seu senso de dignidade e de pertencimento passou a depender da confirmação oferecida pelo ex-namorado. A vulnerabilidade constitutiva do desejo humano, que já é estrutural, se intensificou: a mimese deixou de ser apenas em relação a objetos exteriores e passou a invadir o campo subjetivo.

Enquanto o relacionamento se manteve, a fusão entre modelo e amante não parecia problemática: o reconhecimento fluía, a identidade sentia-se reforçada. Mas no momento da ruptura, o modelo outrora adorado transforma-se num rival terrível — um rival que, paradoxalmente, ainda detém as rédeas do nosso próprio ser. Uma estratégia popular  para tentar escapar dessa dominação é a caricaturização retrospectiva do outro: inventar ou exagerar defeitos, denegrir sua imagem. Mas esta operação não liberta: ao manter o outro no centro das atenções, mesmo que agora como vilão, a dependência persiste. Continuamos orbitando em torno dele, sem retomar a posse de si.

A verdadeira recuperação do desejo exige algo mais radical: é necessário reaver a identidade. Para fazê-la escapar à prisão mimética onde ela foi encerrada, precisamos reencontrar modelos que, ao invés de operarem uma alienação radical do eu, desafiem-nos a melhorar a nossa identidade objetivamente, em liberdade. Em outras palavramos, é imperioso administrar melhor a vulnerabilidade intrínseca do desejo.  Para esta amiga, que é católica, esse modelo primeiro óbvio é Deus — aquele que nos chama a uma identidade fundada não nos nossos méritos, mas no amor absoluto e gratuito. Contudo, a reconstrução não tem que se limitar à dimensão transcendente. É vital encontrar também, no mundo, modelos humanos que nos inspirem sem nos aprisionar: pessoas cuja grandeza nos convida a crescer, mas sem exigir que renunciemos ao nosso ser.

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