As Sagradas Escrituras


Permitam-me um pouco de confidência: tenho dois amigos protestantes pelos quais nutro um afeto sincero. Um é generoso numa dimensão sacrificial; o outro, dono de um humor perene que confere leveza mesmo aos dias mais sombrios. Ambos são tão caros ao meu coração que, se me fosse dado escolher companheiros para a eternidade, desejaria tê-los ao meu lado no céu. É com essa esperança que arrisco a reflexão que segue.

Devo adiantar, porém, que evito debates que se valham da Escritura como arsenal argumentativo. Considero-os impróprios, quase caricatos. Aqueles bem versados na Sagrada Escritura, quando divergem, fazem-no com uma tal gravidade e reverência que a dissensão se transmuta em silêncio respeitoso. Já os que nela são apenas diletantes fariam melhor se dela não se servissem como instrumento de refutação. A Escritura é território sagrado demais para se transformar em palanque dialético. Por essa razão, fiz o propósito de não citá-la neste texto. Deliberadamente, quero permanecer do lado de fora, meditando sobre as condições de possibilidade da Escritura, isto é, sobre o que a torna inteligível e crível como Palavra de Deus.

Tenho para mim que o fundamento da fé nas sacralidade das escrituras é um questão óbvia no sentido etimológico de óbvio, isto é, uma questão que vem ao nosso encontro quando entramos pelo caminho de pensar as Escrituras. Nem todas as questões óbvias, porém, têm respostas óbvias. E essa é uma delas. A meu ver, a resposta passa pela consideração de que a formação do cânone sagrado não é inteligível sem a Igreja, que é quem o definiu na origem. A Sagrada Escritura, portanto, depende da Igreja, não com uma dependência ontológica do menor para o maior, mas sim com uma dependência cognoscitiva do anterior para o posterior na ordem das descobertas.

Essa anterioridade também é, para o cristão, matéria de fé teologal. A Igreja é de instituição divina, orientada por e para Deus e constituída com vistas à salvação do mundo. E onde está a Igreja? Onde há um ministro sagrado ou sua obra, aí está a Igreja. O sacramento da ordem encerra um poder que transcende a instituição humana; ele deriva do Cristo histórico e visível, que escolheu e consagrou homens bem determinados para perpetuar sua missão, os quais, por sua vez, com poder divino, escolheram outros e assim sucessivamente... Essa eleição precede e fundamenta a própria configuração da Igreja: é por meio da consagração desses ministros que a Igreja ordinariamente vem se realizando através dos séculos, os sacramentos são celebrados, a doutrina é transmitida, e, no que diz respeito mais proximamente ao nosso tema, a Escritura é definida e interpretada, continuando a ser proclamada como Palavra viva.

Espero ter ajudado meus amigos a meditar sobre o tema da Escrituras desde fora e tirar uma conclusão definitiva. Despeço-me quebrando a minha  regra de não citar as Escrituras em nome da minha caridade para com eles, que em tão alta conta as têm. De fato, tirar uma conclusão que seja definitiva nesse tema é imprescindível se não quisermos cair na censura ironica que São Paulo dirige àqueles que estão semper discentes et numquam ad scientiam veritatis pervenire valentes (sempre aprendendo e nunca capazes de acabar de chegar à ciência da verdade).

Mais Populares