Concurso e Serviço
A cultura dos concursos públicos no Brasil, intensificada nas últimas décadas, apresenta um paradoxo digno de análise antropológica. Por um lado, trata-se de um processo seletivo destinado a recrutar servidores para o desempenho de funções estatais, o que pressupõe, em tese, uma vocação para o serviço e um compromisso com a res publica. Por outro lado, o discurso hegemônico que permeia esse universo — difundido em especial pelas instituições preparatórias — é marcado por uma lógica estritamente econômica, centrada na promessa de altos salários, estabilidade e ascensão social. A figura do "concurseiro", neste contexto, configura-se menos como um cidadão mobilizado por valores públicos e mais como um sujeito movido pelo desejo de maximização individual de benefícios.
Essa dissonância entre a finalidade que deveria animar o serviço público e os mecanismos reais de motivação dos candidatos pode ser iluminada pela teoria do desejo mimético, elaborada por René Girard. Para Girard, o desejo humano não é espontâneo ou autônomo, mas mimético: desejamos o que o nosso modelo individual deseja, não por uma relação direta com o objeto, mas porque esse objeto é mediado pelo olhar alheio. O mimetismo do desejo cria estruturas de rivalidade e comparação que, em contextos sociais específicos, tendem a escalar até o conflito ou até a frustração crônica.
No caso dos concursos públicos, o desejo pelo cargo estatal é frequentemente mediado por modelos de prestígio — isto é, por figuras que já ocupam posições de destaque, geralmente associadas à remuneração elevada, ao status social ou à possibilidade de uma vida confortável. Não se trata, portanto, de uma escolha racional puramente orientada por afinidade vocacional ou pelo chamado ético ao serviço, mas de uma reprodução mimética de desejos que circulam no imaginário coletivo como sinônimos de sucesso e reconhecimento.
Essa dinâmica mimética tem implicações importantes. Em primeiro lugar, ela contribui para uma hipertrofia do valor simbólico do cargo público, gerando expectativas desproporcionais e muitas vezes irreais sobre a vida funcional. Em segundo lugar, ela instaura uma lógica concorrencial perversa, na qual a figura do outro concurseiro passa a ser não um colega ou um futuro parceiro de ofício, mas um obstáculo à realização do desejo. Finalmente, ao submeter o ideal de vida pública a critérios de retorno financeiro, a racionalidade mimética aproxima-se perigosamente do cinismo: o bem comum torna-se um pretexto, e não uma finalidade.
Essa crítica não deve ser confundida com uma defesa ingênua da abnegação ou com um moralismo antiutilitário por princípio. Trata-se, antes, de sugerir que a motivação mais robusta e psicologicamente sustentável para o ingresso no serviço público é aquela que reconhece o valor intrínseco do servir. A centralidade do ganho pecuniário como horizonte exclusivo do esforço preparatório está, segundo a leitura girardiana, condenada a uma instabilidade permanente, pois o desejo mimético, ao não se satisfazer nunca no objeto alcançado, reabre incessantemente a falta.
Uma cultura pública orientada por um ethos do serviço, e não por uma economia do desejo competitivo, seria não apenas mais coerente com a função estatal, mas também mais saudável sob o ponto de vista psíquico e coletivo. A reinvenção do concurseiro como servidor em potência, e não como consumidor de carreiras com melhor custo-benefício do que aquelas da iniciativa privada, pode parecer uma utopia, mas talvez seja a única alternativa a um ciclo mimético que se retroalimenta de frustração, ressentimento e deslocamento existencial.
Sempre me poderão arguir a mim enquanto reprovado com a fábula célebre da raposa e das uvas. Na história de Esopo, a raposa, - que seria eu - incapaz de alcançar as uvas que desejava, acaba por desprezá-las, afirmando que estavam verdes. No universo dos concursos públicos, é verdade que muitos, incapazes de obter a aprovação desejada, tendem a repetir o mesmo gesto de desprezo tardio — mas sem compreender que o erro não está nem na dificuldade das uvas, nem na sua qualidade, e sim na maneira pela qual foram desejadas. O que eu critico aqui, assim, não é o valor intrínseco dos cargos públicos, que continuam sendo instrumentos legítimos de serviço e realização pessoal profunda, mas a lógica mimética que distorce tanto o objeto quanto o sujeito do desejo.
Não é, portanto, meu propósito fazer menos das uvas. Pelo contrário: é precisamente porque reconheço a dignidade dos cargos públicos que proponho outro caminho às raposas. Trata-se de lhes devolver o impulso nobre e inicial do desejo de servir, para que, se e quando alcançarem as uvas, não descubram nelas apenas a amargura de uma conquista oca, mas a doçura de uma vida enraizada no sentido verdadeiro da função pública.