Entre a Competência e o Espantalho


Há uma anedota que se repete em biografias e depoimentos sobre Sobral Pinto, uma das figuras mais veneradas da advocacia brasileira. Conta-se que ele simplesmente não sabia cobrar pelos seus serviços — ou melhor, não conseguia fazê-lo de forma proporcional à excelência do que oferecia. Não era incompetente, antes o contrário: foi defensor de presos políticos em tempos sombrios, jurista brilhante e homem de princípios. Mas, economicamente, não se tornou rico. Essa história, narrada com um tom de reverência, sempre levanta a mesma pergunta incômoda: por que alguns profissionais liberais enriquecem, enquanto outros, igualmente ou até mais competentes, permanecem em relativa penúria? Por que alguns "sabem cobrar" e outros, não?

Partamos, então, de uma hipótese desconcertante, mas metodologicamente fértil: que a competência objetiva entre dois advogados — o que enriquece e o que não — seja equivalente. Resta, então, pensar: o que é esse “saber cobrar”? E mais, por que ele é tão desigualmente distribuído? A meu ver, esse saber não é apenas uma técnica de precificação. Ele está intrinsecamente ligado à capacidade de inscrever-se como signo no imaginário mimético. Trata-se de saber converter-se em símbolo de status — não apenas oferecer um serviço, mas tornar-se objeto de desejo.

À luz da teoria mimética de René Girard, esse saber cobrar emerge como uma forma refinada de manipular a tendência à méconaissance — termo francês que Girard utiliza para descrever um desconhecimento ativo da dinâmica do desejo, isto é, o erro sobre a origem e a natureza do que se deseja. No caso do profissional liberal caro, o desejo de seus serviços não é motivado, em primeiro lugar, por sua competência, mas pelo desejo dos outros — especificamente, dos clientes abastados que já o contrataram ou parecem tê-lo feito. 

O serviço prestado é, portanto, o objeto mimético, e o seu valor de mercado não é função de sua substância intrínseca, mas sim da cadeia de desejo que o envolve. A méconaissance aqui se manifesta no equívoco do cliente, que imagina estar contratando mais competência, quando, em muitos casos, está apenas aderindo a um prestígio espectral. Isso nos conduz à crítica ácida: quanto mais coletiva é a ilusão, mais ela se impõe como verdade. A meritocracia, nesse contexto, dissolve-se em uma estetização da competência — um jogo de encenações, onde a performance vale mais do que o conteúdo.

Saber cobrar, nesse cenário, reduz-se a um duplo movimento: inflar o preço e cuidar para que as aparências o acompanhem. Um escritório em bairro nobre, uma sala com cadeiras de couro, vestimentas bem cortadas e jargões técnicos cuidadosamente dosados — eis o aparato simbólico que desencadeia a imitação. O aumento de preço, longe de afastar a clientela, reforça o desejo mimético: o caro é desejável justamente porque é caro, e é caro porque os desejantes assim o sustentam. A retroalimentação do prestígio mimético engendra o círculo mágico da valorização simbólica. É difícil não ironizar essa maquinaria: o profissional que nada acrescentou em competência, mas que elevou seus honorários e seu figurino, vê-se agora alçado ao patamar de excelência...  Mas seu saber cobrar é, na verdade, uma sofisticação cínica do entendimento girardiano: ele compreendeu que o desejo não é espontâneo, mas sugerido — e que, portanto, pode ser manipulado.

No entanto, antes de encerrarmos essa reflexão em tom de desprezo, vale a pena considerar uma inflexão ética mais generosa. Talvez algum dos leitores — um aristocrata do espírito, tocado pela figura de Sobral Pinto — sinta-se tentado a reduzir seus honorários, inspirado por um ideal de justiça e generosidade. A esse franciscano da advocacia, é preciso fazer uma advertência: há purificações que custam caro demais. A saída do jogo mimético, quando absoluta, pode resultar não em santidade moral, mas em simples ruína de si e dos seus. A virtude, para sobreviver no mundo, precisa de estratégia.

Por isso, talvez o verdadeiro caminho esteja em outro lugar: não em recusar o teatro mimético, mas em representá-lo com dignidade proporcional à competência real adquirida. A encenação é inevitável — e, nesse sentido, quem não se mostra minimamente símbolo será vencido, na disputa por atenção e clientes, por espantalhos bem adornados. E isso porque, mesmo o profissional realmente competente é escolhido, em larga medida, por mecanismos miméticos. Essa consciência pode conduzi-lo a dois extremos: a uma dúvida corrosiva sobre si mesmo (“será que valho mesmo?”) ou a um cinismo superior, uma espécie de maquiavelismo profissional. O primeiro é paralisante; o segundo, desumanizador. A única saída honesta é manter o foco na competência real — não como antídoto contra o jogo mimético, mas como seu fundamento possível. Porque, em última instância, só um saber verdadeiro pode sustentar o papel que se representa.

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