Júri Popular: Uma Norma da Terra


Em diálogos recentes com colegas da área jurídica, notei uma inquietação preocupante para com o tribunal do júri, especialmente entre aqueles com uma formação mais especializada. A maioria expressa uma desconfiança substancial quanto ao júri popular, preferindo um julgamento fundamentado em uma abordagem mais "técnica" e menos suscetível à tão difamada quanto necessária retórica. Embora compreenda essa posição, creio que ela deixa de considerar um elemento fundamental da própria natureza democrática e constitucional do júri.

É inegável que os vereditos do júri não se baseiam em tecnicalidades jurídicas. Porém, longe de representar um defeito, essa característica revela uma força intrínseca ao modelo, particularmente para aqueles que advogam por um sistema democrático robusto, onde a igualdade se torna um pilar essencial. O júri popular, com a plenitude de defesa, ao permitir que cidadãos não especializados na área jurídica participem da administração da justiça, é uma expressão genuína do que a igualdade tem de melhor. Ele transcende o formalismo jurídico, trazendo à tona uma justiça que, embora fundamentada nas normas, está profundamente enraizada nos sentimentos de justiça compartilhados pela comunidade.

Essa implicação da igualdade no júri remonta à estrutura feudal medieval, onde a vassalagem a um suserano criava uma rede de solidariedade entre vassalos. A palavra "par", embora inicialmente se referisse a um companheiro de jornadas, evoluiu para denotar uma igualdade de nível hierárquico. Essa igualdade se concretizava em dois aspectos: primeiro, na comunhão de interesses entre os vassalos; segundo, na oposição de interesses entre o bloco de vassalos e seu suserano. Ao longo do tempo, a concepção do feudo passou de um favor pessoal que o suserano concedia aos vassalos para um direito formalizado destes contra aqule, com implicações significativas para a teoria política ocidental, culminando na elaboração da Magna Carta de 1215 e no estabelecimento das bases do governo limitado e do Estado de Direito. Dentre os direitos derivados do antigo favor pessoal esava justamente o iudicium parium, o juízo de pares: o júri. 

O tribunal do júri pode ser interpretado, pois, como uma extensão moderna desse princípio medieval de justiça que veio dar nas modernas constituições. Durante a Idade Média, consolidou-se a noção de que um indivíduo deveria ser julgado pelos seus pares, não por uma figura de autoridade superior. Embora houvesse uma justificativa pragmática e datada para esse modelo – a ideia de que o julgamento seria mais facilmente executado se os pares concordassem – havia também uma justificação moral mais profunda. Os pares, por sua proximidade com os valores e normas da comunidade que formavam entre si, eram mais capacitados para compreender as particularidades do caso. Nesse sentido específico, o iudicium parium permanece, até hoje, uma prática relevante e justificada, tendo em vista a uma justiça mais sensível aos contextos sociais e morais do grupo.

Hoje, o juiz pode ser visto como o equivalente ao suserano medieval, possuindo autoridade superior e um conhecimento mais elegante, mas frequentemente distante das realidades sociais e culturais que formam o contexto do processo. Por outro lado, os jurados, retirados do povo, trazem consigo uma percepção mais próxima das questões morais e sociais subjacentes ao caso. Essa proximidade com a realidade cotidiana permite que o júri ofereça uma justiça mais alinhada aos valores de sua comunidade.

Para ilustrar essa diferença, considere o caso de um indivíduo acusado de homicídio, onde a motivação do crime envolve uma situação complexa, como a legítima reação a um contexto de caos doméstico. Embora um juiz togado, com sua formação técnica, possa se concentrar unicamente nos elementos formais do direito penal, como a tipificação do crime e as circunstâncias objetivas, um jurado terá mais facilidade para levar em conta as normas que regem a família e o contexto social e psicológico que influenciou o réu, compreendendo melhor as pressões e as dificuldades vividas pela vítima e pelo acusado. O júri, mais do que o juiz técnico, tem a capacidade de enxergar o ato sob uma luz mais humana, mais próxima da moral do cotidiano.

Os críticos do júri popular frequentemente apontam que ele pode dar margem a decisões questionáveis, como a aceitação de cartas psicografadas como provas. Pessoalmente, não sou adepto da força probatória de tais documentos, não porque não creia em comunicações com o além, mas porque tenho para mim que a transmissão sofre muito do problema das linhas cruzadas, em que um espírito malandro pode se passar por outro sem que seja possível, digamos assim, um controle de autenticação.  Contudo, se o júri, como representante da sociedade, considera essas cartas como prova válida, isso não é um defeito do sistema do júri, mas sim um reflexo das crenças e valores predominantes na comunidade. Assim como um voto inadequado não deslegitima o sistema eleitoral, um veredicto problemático não enfraquece a nobreza simples do júri popular.

No que diz respeito à retórica, frequentemente citada como uma vulnerabilidade do modelo do júri, vale lembrar que a decisão de qualquer juiz, seja ele técnico ou leigo, é inevitavelmente influenciada por um discurso que, por mais cheio de jargões, jamais se poderia chamar de científico. O julgamento das contingências humanas é sempre permeado pela persuasão, seja nas argumentações dos advogados, seja nas considerações do juiz. A decisão judicial não é uma ciência exata; é, antes, uma construção interpretativa, necessariamente influenciada pelo poder da retórica, própria ou alheia, sóbria ou efusiva. A retórica do juiz pode ser mais refinada, o que não garante por si só, porém, a sua maior veracidade. Ela também se submete a um processo de persuasão e não de demonstração matemática. 

Dessa forma, o tribunal do júri não é apenas um instrumento técnico de aplicação da lei, mas uma expressão direta da democracia e do movimento constitucional, que, ao incorporar a moral coletiva e a experiência vivida da comunidade, assegura que a justiça seja moldada não apenas pelos olímpicos cânones jurídicos, mas também pelos princípios éticos e sociais oriundos da terra. 


Mais Populares