A Laicidade do Estado


A linguagem jurídica, ainda que técnica por vocação, não se encerra num laboratório, isto é, num sistema autônomo ou impermeável ao mundo exterior. Ela opera em um regime de tensão constante entre a precisão conceitual, exigida pela dogmática, e a necessidade de inteligibilidade mínima por parte do cidadão comum — destinatário, afinal, das normas jurídicas. Nessa interface entre o técnico e o cotidiano, o discurso jurídico se deixa atravessar por compreensões extrajurídicas que, por vezes, deslocam ou deformam o significado de certos institutos. Nesse encruzilhada de sentidos se encontra o adjetivo laico, que significa tanto uma neutralidade pacífica face a instituições religiosas quanto uma blindagem voluntariosa contra qualquer ideia transcedente. 

Esse fenômeno de contaminação semântica não se limita a confusões de termos técnicos ocasionadas por sua popularização. Certos conceitos do Direito, sobretudo aqueles de matriz constitucional, nasceram e ganharam impulso em momentos históricos que transcendem em muito a tecnicidade normativa. É o caso também do princípio da laicidade do Estado, cujo surgimento está intimamente vinculado à ruptura com a tradicional aliança entre o poder temporal e a autoridade eclesiástica — a chamada união entre o Trono e o Altar. Ao contrário, por exemplo, da hipoteca, cuja origem remonta a práticas comerciais e cujo desenho institucional é delimitável nos marcos de uma racionalidade jurídica interna, a laicidade emerge de um contexto político-cultural mais amplo, marcado por revoluções, secularizações e disputas sobre a hegemonia simbólica nos espaços públicos.

Tal distinção se projeta também sobre o regime normativo a que se submetem esses institutos. A hipoteca, como figura típica do direito das obrigações e das garantias reais, encontra sua disciplina em normas legais de escopo delimitado, cuja interpretação tende a maior previsibilidade. Já a laicidade, enquanto princípio de estatura constitucional, radica em texto aberto, sujeito à mediação hermenêutica por parte da jurisdição constitucional, e se irradia por todo o ordenamento como vetor axiológico e critério de compatibilidade normativa. Sua influência, portanto, é inversamente proporcional à rigidez de seus contornos.

Esses elementos conferem à laicidade estatal um grau elevado de complexidade teórica e prática. Trata-se de um conceito que combina historicidade, abertura semântica e centralidade normativa. Ainda assim, algumas premissas podem ser tidas como lógicas. Uma delas, que merece particular relevo, consiste na constatação de que a laicidade jurídica não se confunde com um modelo de hostilidade do Estado em relação à religião. Ao revés, ela pressupõe uma postura de abertura inclusiva à dimensão religiosa, como forma de garantir de maneira efetiva a liberdade religiosa e de consciência, não apenas em sua vertente subjetiva, mas também nas suas implicações objetivas, como o exercício público e profissional de convicções ancoradas em princípios transcendentais.

Do ponto de vista das tradições religiosas — católica ou não — tal configuração implica um risco: a aceitação de que os indivíduos possam, legitimamente e sem qualquer penalidade de ordem temporal, optar por não aderir a qualquer confissão. No entanto, esse ônus não é apenas tolerável, mas desejável, e configura uma verdadeira solução salomônica para as conturbadas relações entre o Estado e as religiões.  A laicidade do Estado dignifica a adesão religiosa, purificando-a de quaisquer vantagens espúrias, permitindo que a fé, quando professada, seja-o com maior autenticidade, despojada de interesses materiais.

Contraditório seria, no entanto, se essa mesma laicidade, em nome de uma neutralidade mal compreendida, conduzisse à negação da possibilidade de atuação pública informada por consciências individuais moldada por valores religiosos ou filosóficos transcendentes. Nesse caso, em nome da neutralidade, sacrificar-se-ia precisamente a pluralidade que se pretende tutelar — e a harmonia ou concordância prática entre os princípios constitucionais seria negada em favor de uma caricatura do próprio ideal laico. A laicidade, assim entendida, converter-se-ia em seu oposto: uma ortodoxia secular autoritária, que proíbe justamente aquilo que foi feita para proteger e elevar.

São de lastimar, portanto, posturas do CNJ contrárias às escusas de consciência de oficiais de cartórios que se negam a celebrar uniões homoafetivas. Pouco importa se as consciências individuais implicadas no caso coincidem com posições de instituições confessionais. O que se proíbe com a laicidade é que as religiões enquanto organizações oficiais tenham ingerência direta no Estado, não que os cidadãos, livremente, tenham escolhido para formar suas consciências essas ou outras religiões e que, uma vez assim formadas, essas consciências individuis venham a se exteriorizar no contexto de um munus público.  O contrário é negar a liberdade religiosa, ou seja, desqualificar como cidadão um católico, envagélico ou umbadista pelo simples fato de sê-lo. 

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