O Humanismo Girardiano ante o Sanctum Sanctorum
É preciso começar dizendo com franqueza que, embora o que se siga se trate só de uma leitura possível de René Girard entre outras, busquei realizá-la do modo que me pareceu o mais prudente. No entanto, não ignoro a contingência desse meu esforço, e que René Girard e os girardianos possam se revelar como impostores humanistas no sanctum sactorum da fé. Gostaria, porém, evitar esse sacrifício antigo e, para isso, acho imporante adotar a chave de leitura correta. A questão, pois, que me lanço a abordar é a seguinte: o discurso antropológico girardiano é fundamentalmente filosófico-humano ou teológico-divino? Para isso, é essencial uma distinção — ainda que orientada para a convergência: a de que filosofia e teologia são pontos de vista diferentes sobre a mesma realidade, e que a conjugação entre ambos deve ser possível para quem ousa uma compreensão total. Esse tendência de totalidade não implica rivalidade louca entre filósofo e teólogo, mas cooperação, uma imitação recíproca construtiva, que se funda na convicção de que a verdade não é um bem escasso, mas sobreabundante.
Antes da cooperar, porém, penso ser necessário averiguar com clareza o que distingue essas duas ordens de conhecimento: a filosofia parte da experiência, e busca, por meio da razão, elaborar um saber sobre o mundo e o homem, chegando ao limiar que dá acesso ao divino; a teologia parte da revelação, e procura compreender o mundo e o homem à luz de um Deus que se dá a conhecer. Assim, o critério epistemológico da primeira é a experiência; o da segunda, a fé divina. É verdade biográfica que, no pensamento de René Girard, o desejo mimético surge primeiro, como uma categoria antropológica, não teológica. Trata-se de uma intuição de natureza eminentemente humana, ainda que com ecos provindos também da Revelação.
O pensador francês descreve o desejo humano como imitação: não desejamos diretamente, mas desejamos o que o outro deseja. Essa constatação inaugura o problema do conflito e da rivalidade, e culmina, no plano coletivo, numa crise de indiferenciação: todos passam a se confundir em sua violência recíproca, a ponto de o corpo social correr o risco da desintegração. É só neste segundo momento que surge o mecanismo do bode expiatório: a convergência espontânea e quase instintiva da violência coletiva contra um indivíduo ou grupo, cuja eliminação restaura a paz e a ordem. Esse mecanismo talvez nunca pudesse ser conhecido plenamente sem a luz da Revelação cristã. É sobretudo nas narrativas bíblicas — e de modo mais definitivo na paixão de Cristo — que o mecanismo é desmascarado: ali, a vítima é plenamente inocente, e Deus se revela do lado dela e não dos acusadores. Não é exagero dizer, portanto, que o conhecimento do bode expiatório lucra imenso com a Revelação, e muito provavelmente não seria possível em toda sua clareza profunda sem ela. Pode, portanto, ser dito teológico, mas se dá só num segundo momento da vida de Girard. Nesse sentido, cabe perguntar: A prioridade no tempo do discurso humano sobre o divino garante por si só que René Girard não seja um teólogo? A meu ver, não. O critério cronológico seria superficial demais. Girard poderia ter, inconscientemente, partido um de dado revelado.
Vale a pena notar, de passagem, que essa tentativa de Girard de concatenar o mecanismo do bode expiatório com o desejo mimético não é fruto de um espírito de sistema equilibrado, mas parece pender excessivamente para um pessimismo: o desejo mimético aparece quase sempre como gerador de violência, e raramente como possibilidade de aprendizagem benigna. Esse pessimismo, no entanto, possui o mérito inegável de tornar visível uma verdade decisiva e sempre urgente: o desejo mimético descontrolado conduz à crise, e essa crise exige a expulsão de um elemento diferencial que ameaça a identidade do grupo. O exemplo do sistema penal pode ilustrar: se não exclui o criminoso (ou não o distingue de algum modo), o grupo perde sua identidade honesta.
A questão sobre se essa exclusão é arbitrária ou pode ser justificada pertence à ontologia girardiana do sacrifício, que aqui não pretendo abordar. O foco, neste ensaio, é outro, de corte gnosiológico: quem conhece mais verdadeiramente o mecanismo da exclusão? Esse conhecimento mais verdadeiro é de natureza filosófica ou teológica? A resposta que arrisco é a seguinte: quem conhece com mais verdade o mecanismo da exclusão é, de fato, o próprio excluído. Esse conhecimento, porém, é vivencial, e se inscreve no corpo, na pele, na memória. O excluído sabe — sabe de um saber que é sofrimento, e, portanto, não é apenas saber. Esse lugar de fala privilegiado (com perdão da tautologia) decorre da experiência, e não da revelação. O que ele pode dizer é um testemunho, não uma doutrina.
Esse testemunho, pois, é filosófico antes de teológico, não no sentido de que esteja já racionalmente elaborado, mas porque tem por critério a experiência, e não a fé. A canção do excluído, se marcada pelo amor e pelo perdão, pode ser belíssima, pode tocar profundamente o coração humano e abrir espaço para a compreensão e a graça, motivos mais do que suficientes para dar atenção a marginalizados como James Alison. Porém, enquanto não interpretada à luz de uma revelação externa a ela, não se torna teologia. A razão de seu privilégio é, paradoxalmente, o que o limita: é saber de experiência feito, e por isso mesmo, permanece na ordem da filosofia — entendida aqui não meramente como técnica acadêmica, mas como uma sabedoria que brota do sofrimento humano diante de um mundo sem Deus.
O Evangelho, nesse sentido, integra essa sabedoria humana ao conhecimento divino: “Deus meu, por que me abandonaste?” Essa palavra de Cristo no Gólgota é o ápice do paradoxo. Trata-se de uma expressão demasiado humana — mas dita por Deus. Desse modo, a teologia não se opõe a esse saber de experiência e dor. Pelo contrário, ela o escolhe como principal dentre as experiências humanas para o acolher e iluminar. A filosofia o recolhe como grito; a teologia, como ocasião em que a resposta da ressurreição é mais necessária. O discurso girardiano, nesse ponto, oscila entre essas duas ordens: nasce de um olhar antropológico rigoroso, mas é radicalmente aberto à revelação cristã. Em Girard, filosofia e teologia não competem, mas se revezam, na esperança de que, imitando-se mutuamente com generosidade, sejam capazes de dar conta do mistério humano — esse mistério que, afinal, nunca é exclusivamente filosófico nem apenas teológico.