O Mito da Genialidade
O livro Peak: Secrets from the New Science of Expertise, de Anders Ericsson e Robert Pool, representa um marco importante na demolição do mito da genialidade inata. Através de uma análise rigorosa de décadas de pesquisas sobre prática deliberada, Ericsson demonstra que habilidades extraordinárias — no violino, na matemática ou nos esportes — não são, em essência, dons naturais que já nascem maduros, mas resultados de métodos de treinamento específicos, longos períodos de prática intencional e, podemos acrescentar, de uma estrutura de imitação bem orientada. O gênio é, portanto, menos um nascido diferente do que um treinado diferentemente, ainda que sob condições altamente exigentes. Esta conclusão é particularmente consonante com a teoria mimética de René Girard, pois aponta para o caráter profundamente relacional, mediado e imitativo da excelência humana. A verdadeira genialidade, longe de ser um privilégio de nascimento, é uma conquista da humildade perseverante diante de modelos de excelência. A genialidade é, antes de tudo, a paciência humilde de se construir.
Para Girard, um dos maiores obstáculos à compreensão do desejo humano é o fenômeno da méconaissance — um termo francês que talvez possa ser traduzido como erro ou equívoco profundo, mas que, em Girard, adquire o sentido técnico de um não-reconhecimento das mediações miméticas. Em outras palavras, é a cegueira diante do fato de que nossos desejos são modelados por outros ou sobre quem deveria ser esse outro. O mito da genialidade é um dos modos mais sofisticados de méconaissance: ele encobre as redes de imitação e esforço através de uma narrativa encantadora de dons naturais e talentos espontâneos. Isso reforça a ilusão narcisista de que nossos sucessos ou fracassos decorrem apenas de qualidades internas, isoladas da liberdade do desejo.
Essa análise se torna ainda mais pertinente quando consideramos o acesso à educação como um microcosmo sacrificial. Cada exame, concurso ou processo seletivo é, em certo sentido, uma operação de exclusão: poucos entram, muitos são deixados para trás. Trata-se, portanto, de um espaço privilegiado para o estudo da legitimidade dos sacrifícios modernos. Devemos, porém, distinguir cuidadosamente duas dimensões aqui: a ontologia do sacrifício, que avalia a sua legitimidade enquanto mecanismo de inclusão e exclusão, e a sua gnoseologia, que interroga a méconaissance associada e a possibilidade de uma inteligência crítica da vítima.
A questão transversal que se impõe é a seguinte: será que a vítima, o excluído, pode vir a entender as razões de sua exclusão? Se sim — se o processo é transparente e inteligível, e se a exclusão não é atribuída a um déficit ontológico de valor pessoal, mas compreendida em termos relativos e contingentes —, então estamos diante de um sacrifício ontologicamente legítimo. A função social da educação, nesse quadro, deve ir além da simples seleção: ela precisa formar a inteligência da vítima, cultivando uma compreensão crítica que não mergulhe o reprovado numa culpabilização destrutiva. Em termos mais claros: a questão que nos aguilhoa é como reprovar um aluno sem fazer com que ele acredite ser burro e incapaz... Como permitir que o excluído conserve sua lucidez e seu desejo?
A resposta não é simples, mas certamente não se resolve apenas pela justiça dos processos. Ter um processo justo é necessário, mas não suficiente. A legitimidade mais profunda passa pela capacidade dos participantes de compreender o jogo de desejos em que estão imersos: de perceber que seus esforços não são isolados, mas inscritos em redes miméticas, e que o fracasso, quando ocorre, não é uma condenação ontológica, mas uma etapa, muitas vezes contingente, dentro de um percurso de modelagem e amadurecimento.
Um exemplo concreto de como essa inteligência crítica poderia ser cultivada seria a inclusão, nos currículos escolares e universitários, de módulos dedicados à educação mimética mais ou menos formal: momentos reflexivos em que os alunos fossem convidados a analisar a gênese dos seus desejos acadêmicos e profissionais, a identificar os modelos que os inspiram e a desnaturalizar o sentimento de fracasso. Poder-se-ia, por exemplo, após a divulgação dos resultados de um concurso, realizar encontros nos quais, em vez de celebrações dos "vencedores" e estigmatização dos "perdedores", se discutissem os processos de aprendizado, os fatores de sorte e azar, e a natureza relacional da excelência. Além de contribuir com a elevação do nível das provas, essa democratização do sucesso levaria a uma educação que não apenas seleciona, mas também salva — no sentido mais profundo de preservar a dignidade e o desejo dos que ainda caminham.