Pecado Original


A assertiva voluntarista, tipicamente moderna, segundo a qual "eu sou o meu desejo" não tem por que ser a reivindicação de uma identidade autônoma. Mais sinceramente, ela pode e deve ser a confissão de uma vulnerabilidade constitutiva. O sujeito não se define senão a partir do desejo, e este, por sua vez, não se define senão a partir do outro. A subjetividade, portanto, é uma função do desejo, e o desejo, uma função da mediação. René Girard, ao estabelecer a estrutura triangular do desejo – sujeito, modelo e objeto – desloca o centro da cena antropológica do ensimesmamento para a alteridade. O desejo não é espontâneo, originário ou autofundado. O sujeito deseja o que o outro deseja, não apenas porque o outro possui o objeto, mas porque o outro é o seu ideal verdadeiro, o modelo. Assim, o desejo genuíno e mais profundo é sempre desejo de ser, antes de ser desejo de ter. 

Nesse sentido, afirmar "eu sou o meu desejo" é também dizer "eu sou o desejo do outro em mim". Não reconhecer isso ou errar sobre a origem exata do desejo tem consequências trágicas, e esse talvez seja um dos primeiros ensinamentos da Bíblia. O relato bíblico da queda de Eva no Gênesis pode ser lido como a primeira grande cena de desejo mimético na tradição ocidental. Eva deseja "ser como Deus". Esta aspiração, em si, não implica ainda rivalidade. Trata-se de um desejo de ascensão ontológica, típico da estrutura triangular: Eva vê em Deus o modelo por excelência. Foi, portanto, o próprio Deus que lhe colocou no coração o desejo de ser como Ele. No estágio da bondade intrínseca da criação ainda não maculada pelo pecado, o desejo é mediado verticalmente, e pode ser contido ou elevado pela norma, pela interdição divina – "não comerás do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal".

A serpente, no entanto, reconfigura essa mediação. Ela opera uma inversão que é decisiva: apresenta Deus não apenas como modelo, mas também como obstáculo. Ao dizer que Deus proibiu o fruto por temer que o homem se tornasse "como Ele", a serpente introduz a desconfiança e, com ela, a rivalidade. O modelo torna-se escândalo. A mediação, que antes podia se dar por obediência, agora se tensiona pela transgressão. Nesse momento, o desejo de Eva se converte em desejo mimético rival: ela deseja ser como Deus contra Deus. O modelo continua a ser mimetizado, não, porém, como guia, mas sim como adversário. A norma – que media de forma estável e hierarquiza a relação entre o sujeito e o modelo – é rejeitada, porque aparece como barreira e, portanto, como parte do escândalo. Surge então o desejo desordenado: não apenas de possuir o conhecimento do bem e do mal, mas de ser o próprio modelo, de suplantá-lo, de ocupar o lugar divino por excelência, isto é, aquele de onde Deus opera a sua mediação.

Esse é o momento inaugural da violência simbólica na história humana. Quando o modelo é percebido como obstáculo, o desejo se absolutiza e o outro se torna inimigo. O pecado original, nesse quadro girardiano, não é apenas desobediência normativa, mas a inauguração da rivalidade mimética: o momento em que o desejo se emancipa da norma apenas para cair na servidão da inveja. Assim, a antropogênese segundo Girard não se dá por um ato legítimo de liberdade, que seria incorporar a norma no quadro maior do desejo, mas por uma confusão de mediações. O humano emerge não simplesmente como aquele que deseja, mas como aquele que deseja o desejo do outro – e que, ao ver no outro um rival, inaugura um ciclo quase interminável da mentira e da violência. O paraíso é perdido não porque o desejo seja mal, mas porque ele foi desviado do modelo verdadeiro (Deus como Pai) para o modelo escandaloso (Deus como obstáculo), pela astúcia da serpente, que é a figura da perversão mimética.


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