Ressentimento Normativo

 



René Girard compreende o desejo humano não como espontâneo, mas como fundamentalmente mimético. Desejamos não diretamente os objetos, mas os objetos tal como os vê e deseja um modelo. A mimese do desejo implica, portanto, uma triangulação: sujeito, objeto e modelo. Um estudante de literatura aspirante a escritor, por exemplo, não decide diretamente seu estilo ou sua língua literária; ele os escolhe a partir de um olhar que busca refletir, mesmo inconscientemente, aquele de um modelo admirado — digamos, Machado de Assis. Nesse cenário, não se trata apenas de adotar uma técnica, mas de aproximar-se ontologicamente da grandeza percebida no outro: escrever como Machado não apenas para escrever bem, mas para ser como ele.

Contudo, quando esse processo imitativo encontra um obstáculo, o desejo se reconfigura. O impedimento converte-se em centro de tensão e frustração. O infiel, desejando o que vê no fiel — sua comunhão com o sagrado —, vê-se barrado pela própria norma que estrutura o objeto desejado. Essa impossibilidade de acesso converte-se facilmente em ressentimento: o desejo impedido não se extingue, mas se volta contra o que o impede, ou seja, contra a norma. A norma, antes silenciosa, torna-se visível como escândalo — no duplo sentido do termo: pedra de tropeço e ofensa. É assim que nasce o ressentimento.

Essa dinâmica é visível mesmo em campos aparentemente distantes da religião, como a ortografia. O Acordo Ortográfico de 1990, ao modificar artificialmente a língua portuguesa, impôs uma cisão entre o escritor contemporâneo e o corpo monumental da tradição. Aquele que desejava imitar a forma literária de um modelo — um Camilo, um Machado, um Eça — vê-se obrigado a escrever como seus contemporâneos, sob pena de parecer errático. O novo código não apenas impossibilita a reprodução da aparência textual do modelo, como se impõe como um obstáculo normativo à mimese, suscitando, também aqui, uma forma de ressentimento. A irritação de alguns leitores e escritores de nossos dias com o acordo não é apenas conservadorismo, mas a frustração de um desejo mimético impedido.

Neste contexto, emergem pelo menos duas respostas possíveis ao ressentimento. A primeira é destrutiva: consiste em abolir a norma, rompendo com ela para aceder diretamente ao modelo. Trata-se de uma fidelidade aparente, que vê no modelo apenas a superfície — as formas, os gestos, os sinais exteriores. Assim como há quem julgue que ser católico consiste somente em casar na Igreja e  comungar, desprezando a luta interna por viver os mandamentos, há também quem veja na grafia arcaica a essência da grande literatura, sem perceber que Machado de Assis não era grande porque escrevia theatro, mas porque encarnava com profundidade a tensão entre forma e conteúdo, tradição e inovação, linguagem e verdade.

A segunda resposta, mais exigente, consiste em reconhecer o modelo em sua inteireza — e, por isso mesmo, reconhecer que ele só é verdadeiramente imitado quando se compreende a estrutura profunda que o sustenta. Receber a Eucaristia sem conversão é paródia; escrever como Machado sem compreender seu espírito é pastiche. Superar o ressentimento, portanto, implica uma reconciliação com a norma, não como pedra de tropeço, mas como mediação legítima e pedagógica. Isso requer uma leitura menos mimética no sentido cego, e mais diacrítica, mais livre, mais amorosa. Em suma, uma leitura mais cristã.

Assim, Girard me permite enxergar que o ressentimento contemporâneo, seja moral ou literário, não nasce de um excesso de regras, mas de um desejo cego de modelos mal compreendidos. O desafio é sempre o mesmo: reconhecer que a verdadeira imitação supõe um caminho de transformação pessoal, e não apenas a cópia das formas exteriores do outro.


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