Uma Nota sobre o Desejo em Thomas More e René Girard




Há uma linha tênue, e por vezes esquecida, entre o que poderíamos chamar de almejar e esperar. Compreendê-la pode lançar luz sobre nossa relação com o possível, o real e o ideal. Esta nota labiríntica tem como objetivo elucidar essas nuances do desejo à luz de uma interpretação de Thomas More, especialmente a partir de um trecho enigmático do final de Utopia. Após ouvir o relato do viajante Raphael Hythloday, More nos confidencia, imagino, com um sorriso leve: "confiteor permulta esse in Utopiensium republica, quae in nostris ciuitatibus optarim uerius, quam sperarim." ("Confesso que há muitas coisas na república dos utopianos que eu mais almejaria [optarim] que se realizassem em nossas cidades, do que esperaria [sperarim].")

A oposição entre optarim e sperarim, muitas vezes passada despercebida, é reveladora. O verbo optare se refere ao desejo que, embora formulado, está desencarnado da realidade concreta — é irrealizável, e nesse sentido, mentiroso. Já sperare indica um desejo ainda em germe, mas que encontrou solo fértil na realidade, e por isso é potencialmente realizável. Trata-se, portanto, de uma diferença entre sonhar e plantar: ambos operam no campo do porvir, mas apenas um insinua o desabrochar. À primeira vista ou numa primeira camada do discurso, essa distinção serve, em More, a uma provocação. Através dela, ele manifesta a seus contemporâneos sua dúvida quanto à possibilidade de as cidades deles virem a ombrear com as qualidades da república utopiana. A Utopia, nesse sentido, seria “boa demais para ser verdade”.

Numa outra camada do texto, temos que notar que esta expressão, tomada literalmente, beira a blasfêmia filosófica: fere o princípio metafísico da conversão dos transcendentais. Como pode, então, algo ser bom demais a ponto de deixar de ser verdadeiro? O texto de Thomas More não me parece pretender negar esse princípio. Ao contrário, sua frase parece portar uma ironia intencional — e talvez ambígua — que merece ser desfiada.

Duas leituras irônicas, de fato, da expressão “bom demais para ser verdade” são possíveis, conforme a falsidade da expressão literal se esconda na bondade ou na verdade. Na primeira, o “bom” que, por ser excessivo, se revela incompatível com a verdade, na verdade nunca foi bom. Pense-se, por exemplo, na promessa de um regime político que assegure a todos nessa terra alegria sem dor, abundância sem trabalho, ordem sem sacrifício. Tal utopia, por sedutora que seja, deixa de ser boa porque não reconhece a imperfeição humana e a necessidade de retificá-la. A sua “bondade”, assim, é apenas um simulacro. Na segunda leitura irônica, ocorre o inverso: a verdade que não suporta uma bondade demasiada é ela mesma uma verdade falsa. Suponha-se, aqui, o cínico que afirma, diante de um santo, que se trata de uma pessoa generosa por interesse oculto. A bondade pura, segundo esse olhar, não pode ser verdadeira. — mas é o olhar que é falso, pois julga com critérios empobrecidos a plenitude do bem.

Isso tudo para dizer que, para mim, é da primeira ironia que Thomas More se vale. Ao predicar de Utopia que ela é "boa demais para ser verdade", o matiz irônico da alma de More inverte a equação utopista: em vez de uma crítica à realidade por não ser boa, temos uma crítica à bondade ideal por não reconhecer os limites da realidade. A bondade que não pode existir senão fora do mundo, afinal, não é verdadeiramente boa — é só retórica elevada à condição de miragem.

Essa escolha estilística e filosófica nasce do realismo alegre do espírito de Thomas More. Não o realismo ranzinza que não só abdica de sonhar, mas também de plantar, senão que o realismo jovial de quem sabe que o in fieri, o que acontece aos poucos e com tropeços, é ainda melhor do que o poderia acontecer na fantasia. Para More, não há nada como estar com os pés no chão e longe da Utopia, por mais interessante que esta seja.  É sempre aqui que a esperança ganha corpo — e o desejo, medida.

É inevitável perguntar-se, nesse ponto, que tipo de desejo é de Girard, o autor do desejo: um optare ou um sperare?  Não quero saber, diretamente, da teoria triangular, mas somente o que Girard, antes de racionalizar assim o desejo, desejava para a sociedade. Ele almejava uma sociedade utópica, isto é, sem absolutamente nenhum sacrifício? 

No atual estágio da minha curiosidade girardiana, posso dizer que ele não era utópico. Para ele, o sacrifício poderia ser diminuído, mas nunca extirpado antes do fim dos tempos. A sociedade ideal, sugerida por Cristo, é um desejo que, mais e mais imitado ou mimetizado, intensifica-se à medida que o tempo passa, mas sua realização encontra obstáculos insuperáveis no tempo e suas estruturas. A revelação como denúncia do mecanismo sacrificial tende a diminuí-lo à força de conversões pessoais, e não de uma técnica política revolucionária. 

Note-se, por fim, que Girard tampouco é roussoniano. Para ele, a transformação começa pela consciência, não pela negação da realidade do engano original e sua propagação. O desejo de uma sociedade menos violenta brota de dentro da experiência concreta da violência — ele não é um delírio sobre uma humanidade "boa por natureza".

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