Uma Questão de Direito Privado


A distinção clássica entre direito público e direito privado, que remonta à tradição romanística, ancorava-se na diferenciação entre a utilidade coletiva e a de cada um. Ulpiano, notoriamente, formulou o critério que orientaria séculos de dogmática jurídica: publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem – o direito público concerne à coisa pública, ao interesse do Estado; o privado, à utilidade dos indivíduos. Esse critério teleológico foi posteriormente consolidado na estrutura dos sistemas jurídico-positivos europeus, conformando dois campos distintos de incidência do princípio da legalidade: no direito público, a legalidade tem caráter estrito – só é permitido o que a lei autoriza; no direito privado, prevalece uma legalidade de feição ampla ou negativa – tudo o que não é vedado é permitido.

É verdade que esse panorama tradicional sofreu inflexões com o movimento de constitucionalização do direito civil. A penetração de normas e princípios constitucionais nas relações entre particulares – fenômeno cuja expressão mais visível é a eficácia horizontal dos direitos fundamentais – tornou porosas as fronteiras, criando zonas de interpenetração normativa em que categorias dogmáticas clássicas passam a exigir reinterpretação. Contudo, essa reelaboração não pode confundir completamente o público e o privado em prejuízo deste último, sob pena de se cercearem liberdades. Não é porque um direito constitucional interfere numa relação privada que essa passa ser pública. Assim, certos referenciais hermenêuticos permanecem úteis à tarefa de reconstrução crítica, como a própria diferença na forma de incidência do princípio da legalidade nas duas esferas.

É, pois, à luz dessa distinção entre público e privado que se pode analisar, com alguma precisão, o recente retorno do debate sobre o ensino domiciliar (homeschooling) ao centro das atenções, motivado pela condenação judicial de um casal paranaense que optou por educar seus filhos fora do sistema escolar formal. O núcleo do problema jurídico reside em determinar se o ensino domiciliar configura um exercício de liberdade no âmbito do direito privado – e, portanto, juridicamente permitido enquanto não expressamente proibido – ou se depende de autorização normativa explícita, como se se tratasse de uma prerrogativa de direito público.

A nosso ver, a prática do homeschooling constitui manifestação legítima de um direito privado, dotado de feições públicas apenas acidentais e instrumentais. A tese segundo a qual os filhos estariam sob titularidade estatal – concepção inspirada em modelos mais autoritários como o espartano – vai de encontro com o texto constitucional brasileiro. O art. 226 da Constituição de 1988 inscreve a família como núcleo existencial autônomo, sob proteção do Estado, e não como sua criatura ou dependência administrativa. O Estado, nesse contexto, deve exercer uma função subsidiária, jamais substitutiva.

Tal leitura se robustece com a conjugação do art. 226 com o art. 205, que dispõe que a educação é dever não apenas do Estado, mas também da família. A partilha desse dever, longe de significar um poder de direção equivalente, deve ser lida à luz do princípio da primazia da família, reconhecida como "base da sociedade". Nesse arranjo, o Estado não é o sujeito central do processo educativo, mas partícipe ancilar, destinado a auxiliar e supervisionar padrões mínimos de qualidade, e não a ditar, por via autoritária, o conteúdo inteiro ou local da formação intelectual e moral da prole.

Ademais, a ausência de lei regulamentadora não implica a inexistência do direito ao ensino domiciliar. Tal direito não decorre de norma programática nem muito menos institutiva. Decorre, antes de tudo, do próprio princípio da legalidade em sua feição privatística: se não há norma proibitiva, tampouco há vedação. Tal dispositivo vem inscrito no inciso II do art. 5o, cujo parágrafo primeiro lhe garante aplicação imediata. Exigir lei autorizativa, como condição de existência de um direito exercido no âmbito da autonomia familiar, é inverter a lógica do ordenamento, transformando os particulares em agentes públicos, subordinados ao princípio da legalidade estrita.

Em suma, o direito ao ensino domiciliar, enquanto expressão da autonomia privada e do poder familiar, não depende de positivação infraconstitucional prévia. O que se impõe ao Estado, sim, é o dever de instituir mecanismos de avaliação que assegurem a observância dos objetivos constitucionais de unidade da educação no território nacional– o que não se confunde com autorização prévia para o exercício do direito. A inexistência de tais mecanismos revela uma omissão estatal, não um abuso por parte das famílias.

Portanto, o entendimento esposado pelo STF no RE 888.815/RS, segundo o qual a ausência de regulamentação inviabilizaria o homeschooling subverte a lógica do nosso Estado de Direito, alçando o Poder Público à condição de protagonista absoluto da educação. A ortodoxia constitucional, no entanto, não tolera tal inversão: o Estado é servidor da família, não seu tutor.

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