A Cátedra e a Carne
A discussão sobre o sexo, e particularmente sobre a normatividade das relações sexuais, não pode ser iluminada sem se levar em conta a estrutura integral da pessoa como unidade de corpo e alma. Essa compreensão prévia, especulativa, é ela mesma informada pela moral. A inclinação ao sexo oposto, nesse quadro, não merece deferência apenas por ser natural, isto é, própria da biologia e do corpo. Seria um equívoco de naturalismo grosseiro sustentar que toda inclinação natural é automaticamente legítima. A heterossexualidade, assim, encontra sua justificação mais profunda não em sua em sua base biológica, mas porque, por meio dela, realiza-se um bem humano objetivo cognoscível como tal pela alma racional: a procriação no interior do casamento, ambiente que melhor favorece o nascimento, o cuidado e a educação dos filhos. Aqui, não é tanto o dado biológico que importa - embora este não deva ser desprezado - mas sim o fim humano a que tal inclinação se ordena.
Poder-se-ia, contudo, objetar — com argumentos válidos dentro de certa lógica moderna — que o fator humano, entendido como maturidade afetiva e estabilidade relacional, pode operar independentemente da natureza biológica. Casais homossexuais, dir-se-ia, seriam igualmente capazes de viver vínculos duradouros e, inclusive, de se abrirem à procriação por meio da adoção. A afetividade, neste modelo, se emancipa da diferença sexual, e a realização humana passa a ser definida exclusivamente pelo desejo e pela construção subjetiva do amor.
Entretanto, esta tese — por mais bem-intencionada que seja — incorre numa cisão antropológica. Ao afirmar a suficiência do “fator humano” sem referência à natureza, ela rompe com a unidade substancial da pessoa como corpo e alma. Não se trata de negar a dignidade de pessoas com inclinações homossexuais nem de desprezar sua capacidade de amar, mas de reconhecer que a afetividade humana é chamada a se ordenar segundo a integridade da pessoa. O problema está, muitas vezes, na dificuldade de perceber a bondade dessa ordem, sobretudo quando se está implicado, conscientemente ou não, em uma rede mimética de desejos formados a partir de modelos inapropriados em si ou entendidos em falsa clave — modelos que promovem a rivalidade e a comparação constante. Daí a importância de começarmos pela pedra angular: o modelo dos modelos.
A liberdade cristã, como nos ensina São Paulo, é uma liberdade peculiar. Não se trata de uma liberdade negativa — o mero desfazer das amarras externas —, mas de uma liberdade modelada: Somos livres com a liberdade com que Cristo nos libertou (Gl 5,1). A expressão paulina é mimética do começo ao fim, pois aponta para um vínculo vivo com uma pessoa concreta. Cristo não apenas nos liberta de algo, mas nos dá a liberdade para uma finalidade precisa: para as nobrezas dessa vida agora e para os bens eternos depois, que são objetos do seus desejos e, portanto, também dos de seus imitadores. A liberdade cristã não é jamais neutra; ela é uma filiação que nos reconcilia com a lei moral que nobilita sem excluir, tornando-a desejável e não opressiva.
Com Oughourlian, devemos pensar que, antes de sofrermos sob o peso da moral sexual cristã, sofremos — e aqui reside o ponto mais agudo — de uma má percepção da pessoa de onde ela provém. Cristo se encarna precisamente para se tornar um modelo à prova de rivalidade. Ao dizer-se que Ele é em tudo semelhante a nós, exceto no pecado, duas realidades ressoam: primeiro, Ele se rebaixa (kenosis) para ser um modelo próximo, humano, imitável; segundo, Ele não rivaliza. O pecado, nesse sentido, seria a rivalidade, e Cristo é aquele em quem, em si, não há sombra de oposição ou obstáculo. Entre os homens, Cristo não tem rivais, apenas amigos — tanto da situação quanto da oposição, tanto de direita quanto de esquerda, se entendermos esses termos à luz de uma política, digamos, divina.
De fato, Cristo é um político sublime com as almas, e posso dizê-lo a partir da minha experiência tantas vezes fracassada. Ele nunca as exclui do seu círculo de amizade, mesmo quando ocupam as posições mais marginais do espectro moral. Essa política divina, quando muito, expressa uma oposição pontual por conta de um amor incondicional, ao contrário da política mundana, que opera na lógica inversa: ela expressa um amor sem limites por conta de uma convergência pontual e estratégica.
A relação de Jesus com os fariseus é reveladora. Para entender a estes, valho-me de um insight do Pe. Castellani, segundo o qual, as doenças farisaicas - a casuística, o ritualismo fanático, o messianismo político e a política que chamaríamos aqui de mundana (a amizade com os herodianos) - tem uma causa que convém salientar: os fariseus sofreram de todas essas enfermidades porque se fecharam sobre si mesmos, num afã por união que se sobrepunha à finalidade.
Mesmos a esses, porém, Cristo os têm na conta de amigos, ainda que vindos da oposição. Ele não os exclui e entra com frequência em contato com eles; são eles que, apegados a uma ordem sacrificial antiga, recusam a misericórdia em nome de uma união oca, que não está informada desde dentro por um propósito expansivo. As prostitutas e os cobradores de impostos entram primeiro no Reino dos Céus não porque vivam moralmente melhor, mas porque se encontram em condição existencial mais propensa a não rivalizar com Cristo. A exclusão social os torna imitadores mais disponíveis.
É justamente aquele apego a uma ordem sacrificial antiga, o qual perdura até hoje, que faz com que a revolta contra a norma moral como opressora ganhe ares de legitimidade. É óbvio que nem todos que enunciam a moral sexual católica são fariseus nesse sentido em que atualizo o termo. O que busco notar aqui é que muitas vezes essa moral é ouvida nesse tom por aqueles que mais precisam compreendê-la, gerando uma indignação que, de maneira paradoxal, não é entendida sem o Evangelho.
Essa indignação, de fato, investe contra o que entende ser o uso farisaico da norma — um uso que instrumentaliza a lei para fazer distinções absolutas entre pessoas. Esse tipo de moralismo revela uma falta de santidade palpável para aqueles que mais sofrem sob seu peso. No entanto, aos indignados é bom lembrar que reconhecer a existência desse mau uso não implica que a norma em si seja ilegítima. É preciso distinguir entre o conteúdo da moral e a intenção que parece animar a sua enunciação.
Jesus, aliás, já havia alertado para essa ambiguidade no ensino dos fariseus: "Na cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e os fariseus. Fazei e observai tudo o que vos disserem, mas não imiteis suas ações; pois dizem e não fazem." (Mt 23,2-3). A autoridade moral pode ser ocupada por modelos que, eles mesmos, se põem em rivalidade com os outros. É nesse sentido que, a meu ver, os fariseus "não fazem". Ainda assim, a verdade que anunciam, mesmo se dita com tons que denunciam oposição, não deixa de ser válida. A cátedra de Moisés continua de pé, mesmo quando ocupada por homens incoerentes. O desafio, pois, está em discernir o modelo verdadeiro no interior de um cenário marcado por rivalidade e escândalo.
No fundo, toda moral cristã, inclusive a sexual, só pode ser compreendida a partir da encarnação de um modelo reconciliador. Fora disso, parecerá sempre imposição, repressão, ou privilégio cultural. Dentro disso, revela-se como convite amoroso à reconciliação da pessoa consigo mesma, com a natureza e com Deus. É este modelo que falta ao mundo, e é dele que brota a liberdade que realmente liberta.