A Dança de Salomé
O escândalo atual envolvendo o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) pode ser lido, a meu ver, como um escândalo mimético. A aposentadoria, como promessa de segurança financeira e dignidade no fim da vida laboral, exerce forte atração sobre o desejo coletivo. No entanto, quanto mais desejável se torna, mais se converte em foco de rivalidades, tensões e escândalos — especialmente quando surgem denúncias de fraudes, corrupção ou má gestão. Nesse sentido, o escândalo atua como aquilo que René Girard identificou como “obstáculo para o desejo”, um tropeço que exige resolução simbólica ou concreta para que o corpo social possa seguir desejando. E, como em toda lógica mimética, esse tipo de escândalo tende a reclamar um bode expiatório. Em democracias sadias, este deve ser identificado ao fim de um processo legal justo. O problema é que os processos sacrificiais não esperam: eles aceleram. Daí a questão central que se impõe neste texto: o que, no escândalo atual do INSS, acelera a escolha de um bode expiatório?
Para responder a essa pergunta, vale revisitar um episódio do Evangelho que Girard analisa com particular agudeza: a morte de João Batista, narrada em Marcos 6, 14–29. Herodes, embora pressionado, resiste inicialmente à execução do profeta. Ele o teme, o respeita, talvez até o admire. No entanto, quando Salomé dança — instigada pela mãe e diante de uma audiência fascinada — Herodes se rende. O espetáculo da dança, com sua beleza e apelo sensorial, suspende o juízo racional. O pedido da cabeça de João já não soa como barbaridade, mas como algo inevitável, quase natural. Girard chama a atenção para esse mecanismo de aceleração mimética: o espetáculo estético, longe de ser neutro, catalisa a violência coletiva ao disfarçá-la de decisão individual. A dança de Salomé mascara o assassinato como desejo legítimo.
Essa dança reaparece hoje sob novas formas: a espetacularização midiática e a dramaturgia das redes sociais. No escândalo do INSS, a dança contemporânea assume a forma de reportagens sensacionalistas que constroem personagens dramáticos — o funcionário corrupto, o idoso injustiçado, o fraudador inescrupuloso — cujas histórias são emocionalmente editadas para induzir a empatia ou a repulsa instantâneas. A linguagem audiovisual — vídeos curtos, trilhas sonoras, cortes dramáticos — atua como forma moderna de sedução mimética, convocando o público a participar de um julgamento sumário. Influenciadores, políticos e comentaristas se erigem como arautos da indignação coletiva, muitas vezes exigindo punições severas antes mesmo de qualquer averiguação formal. A justiça, com seu passo lento, torna-se insuportável diante da dança veloz da comoção. O desejo coletivo, mimeticamente excitado, quer a cabeça numa bandeja — mesmo que ela ainda não tenha nome definido.
Outro fator que catalisa o processo expiatório é um tanto irônico: enquanto a aposentadoria se torna objeto de escândalo, ela se torna também mais desejada. A explicação, mais uma vez, passa por Girard. Em The Scapegoat, ele observa que o desejo, ao encontrar obstáculos, em vez de recuar, se fixa neles e os transforma em parte daquilo que deseja. O que seria racionalmente indesejável (um sistema corrupto, inseguro, burocrático) converte-se, paradoxalmente, em índice de valor. A rivalidade, longe de anular o desejo, o alimenta. O desejo por aposentadoria cresce, pois está suficientemente deseducado para compreender que aquilo que todos desejam com fúria — e que se encontra em disputa — deve ser também desejável. A aposentadoria torna-se, assim, não apenas um bem em si, mas um bem justamente porque está no centro do escândalo.
Diante disso, qual seria a resposta adequada? Não há saída no mesmo ritmo da aceleração, embora uma medida jurídica deva ser iniciada sim o quanto antes. Tendo canalizado a indignação pelas vias legais, é necessário cultivar a consciência de que o único caminho possível é o do discernimento: recusar a dança de Salomé em suas versões midiáticas e digitais; resistir ao impulso de nomear culpados antes do tempo; lembrar que o tempo da justiça é outro, é mais lento, porque exige escuta, contraditório, prova. Em tempos de escândalo, o verdadeiro antídoto não é mais fúria, mas paciência. Se o desejo coletivo é incendiado por espetáculos que mascaram o sacrifício, cabe aos que desejam com lucidez não se deixar arrastar pelos passos da dança. A justiça não é espetáculo. E o processo penal não deve ser coreografia para encantar a plateia.