Alegria em Meio às Ruínas
Na paisagem social contemporânea, é útil à compreensão cunhar um conceito de armário que transcenda sua origem vinculada à sexualidade para designar uma estrutura de contenção muito mais ampla. Trata-se de um lugar simbólico, mas real em seus efeitos, reservado às pessoas que, por sua simples condição de existência, destoam de certos padrões sociais esperados. Não se trata de uma rebelião voluntária contra esses padrões, mas, antes, de uma inadaptação que se constata com amargura e que muitas vezes é tratada com um paternalismo estranho. Às pessoas no armário se diz, de fato, “melhor não dizer isso”, “melhor não mostrar isso agora”. É o tom paternal, morno e amável de quem aconselha ocultação, alegando prudência e cuidado. Mas essa prudência, ainda que funcional e até necessária em certos contextos, não é benigna em última instância: é uma prudência de paternidade duvidosa, que merece, no mínimo, ser questionada diante daquelas palavras de Cristo no Evangelho segundo João: Vos ex patre Diabolo estis et desideria patris vestri vultis facere. Ille homicida erat ab initio et in veritate non stabat, quia non est veritas in eo. ("Vós sois filhos do Diabo, e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele"). Aquele que aconselha a mentira como proteção, mesmo com tom doce, não serviria ao pai da mentira?
O armário, assim compreendido, não é apenas o espaço reservado aos homossexuais. Ele é a câmara onde se tenta sepultar a visibilidade dos ex-presidiários, dos imigrantes, dos refugiados, das pessoas com doenças físicas ou mentais, dos iletrados, dos idosos, dos pobres, dos favelados. A essas categorias se somam os negros, cuja exclusão opera segundo um mecanismo particularmente perverso: o branqueamento simbólico e muitas vezes ridículo. Espera-se deles não apenas o silêncio, mas o esforço de simular traços culturais, estéticos e linguísticos que os tornem "aceitáveis" na lógica de um padrão racial dominante.
A exclusão, nesses casos, raramente é violenta no sentido físico imediato. Ela se apresenta sob a forma da educação polida: um convite à distância. “Não se exponha”, “não chame atenção”. Quando muito, a sociedade oferece aos excluídos uma segunda alternativa, mais cruel: permanecerem entre os outros, contanto que se calem, que se dissimulem, que escondam o que são. O preço da inclusão é a morte da autenticidade. Contudo, uma vez que sua verdade, sempre periclitante, é revelada — seja pela aparência, seja pela fala, seja por um gesto qualquer —, portas antes entreabertas se fecham com estrondo. Esse é o dilema, o mecanismo pelo qual opera o que chamaremos aqui de "demônio mudo": um poder que age não gritando, mas silenciando, impedindo a fala. O armário, nesse sentido, não é só esconderijo: é cárcere linguístico. É a negação do discurso, a morte da palavra.
Mas toda mentira e ocultação são radicalmente insustentáveis. O Evangelho, outra vez, nos oferece a chave para pensar essa dimensão teológica do armário: "Nihil autem opertum est, quod non reveletur, neque absconditum, quod non sciatur. Quoniam, quae in tenebris dixistis, in lumine audientur; et, quod in aurem locuti estis in cubiculis, praedicabitur in tectis". ("Nada, porém, há de encoberto que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a ser conhecido. Porque o que dissestes às escuras será ouvido à luz do dia; e o que falastes ao ouvido, nos aposentos, será proclamado sobre os telhados") O armário não é eterno. Mesmo que alguém se agarre ao silêncio por medo ou conveniência, a verdade um dia será anunciada — se não diante dos homens, certamente diante de Deus. Neste plano teologal, a saída do armário não é uma escolha, mas uma antecipação, uma preparação necessária. É um gesto de honesty, como dizem os americanos, de antecipação da luz, porque, diante de Deus, nada permanece oculto.
No entanto, sair do armário não é simplesmente romper o silêncio. É falar — e falar de modo que se possa ser compreendido. É preciso cunhar um discurso, aprender a linguagem que torna inteligível a experiência. Idealmente, essa linguagem deve buscar uma beleza possível, uma forma não apenas de comunicar, mas de atrair a atenção. Nesse sentido, aqui há um ponto crucial: o lugar desde o qual se fala não pode ser a ordem sacrificial. Não se trata de erguer um novo altar onde se imole dessa vez o opressor simbólico. Trata-se, antes, da ruína do antigo sagrado, vista e recepcionada com alegria. A fala que emerge do armário não pode ser produto do ressentimento, porque o ressentimento ainda pressupõe a lógica binária vítima/algoz, e nela ainda se respira um ar velho. É preciso sair dessa ordem.
A fala dos antigos excluídos, portanto, deve assumir a forma de um balbuciar, como o de uma criança aprendendo a nomear o mundo. Não como quem explode, mas como quem tenta, hesitante, dizer-se. O cenário dessa nova linguagem é a derrocada da sacralidade baseada na exclusão. O Antigo Testamento mostra Elias vencendo os profetas de Baal com violência — fogo, morte, espetáculo. Mas após o auge dessa fúria, ele cai em tristeza e pede para morrer, reconhecendo que "não é melhor do que seus pais". E é nesse momento que Deus se manifesta não no terremoto, nem no fogo, mas na brisa suave (sussurro suave, diria outra tradução). A voz verdadeira não é a da vitória violenta, mas a da brisa que consola e revela.
Assim também deve ser a voz dos que saem do armário: não a do novo opressor, nem a do vingador ressentido, mas a do sopro leve que anuncia uma nova convivência possível. Uma fala que não reproduza o sacrifício, mas o desmonte. Não o escândalo da revanche, mas a ternura do início. Em suma, o armário é uma tentativa de enterrar a verdade sob o pretexto de prudência. Mas a verdade, por sua natureza, há de ser dita. Que seja, então, por quem a viveu — não com ódio, mas com coragem; não com fúria, mas com leveza. Porque se o silêncio é a arma do pai da mentira, a fala suave é o dom do Deus que se revela.