Bode Expiatório Hoje




A distinção traçada por São Josemaría Escrivá entre ser sinceramente selvagem e ser selvagemente sincero é mais do que um jogo de palavras espirituoso. Trata-se de um discernimento sutil e profundo, com aplicações que ultrapassam os limites do confessionário e alcançam as estruturas antropológicas e políticas do sacrifício social. 

A sinceridade radical, isto é, selvagemente sincera, não se limita a admitir o erro, mas o assume com horror, ainda que mantendo uma calma confiante na misericórdia divina. A pessoa se entrega ao crivo de uma consciência que busca reconciliação e cura. É o movimento do pecador penitente, não do réu contumaz. Escrivá, por outro lado, nos adverte contra uma sinceridade que, despida de pudor ou propósito de emenda, é na verdade cinismo: uma exposição orgulhosa ou indiferente do próprio pecado, como quem diz "sou assim mesmo e acabou". Eis aí a selvageria sincera, uma expressão menos comum e talvez por isso mais perigosa, que nomeia uma atitude brutal, despótica, que, ainda que embale alguma veracidade, jamais se deixa interpelar por ela. 

Embora essa distinção seja frequentemente associada aos pecados da carne — e com certa razão, pois nesse campo se revela com nitidez a diferença entre o libertino assumido e o penitente ainda lutando —, ela é, em seu fundo, uma chave para interpretar todo o drama da consciência humana diante do mal. Levada a sério, essa distinção nos obriga a refletir não apenas sobre atitudes privadas, mas também sobre estruturas sociais que produzem ou legitimam formas de violência simbolicamente justificadas.

É nesse ponto que entra o segundo eixo dessa reflexão: o modo como o mecanismo do bode expiatório — tal como elaborado por René Girard — pode ser encoberto por um tabu, ou transfigurado por um símbolo. Em ambos os casos, há um sacrifício: um sujeito ou um grupo é eliminado ou silenciado, e esse gesto produz uma coesão, uma catarse, uma sensação de ordem ou de prosperidade. O que gostaria de notar aqui é que a passagem do tabu ao símbolo quase nunca é um caso puro e simples de sinceridade selvagem, pois isso implicaria em desarmar o mecanismo na sua raiz. É necessário entendê-la como um caso de selvageria sincera, admitindo, não obstante, uma gradação de cinismos desde um cume relativo de sinceridade até um vale absoluto de falsidade requintada.

Para ficar mais claro, tenhamos presente que, no tabu, há uma interdição, uma opacidade: o sacrifício é necessário, mas seu mecanismo permanece invisível ou negado. Não se pode sequer falar do assunto. No símbolo, ao contrário, o sacrifício é tematizado, reinterpretado para deixar de ser um mero assassinato e, assim, é investido de sentido. Como tabu, o crime é silêncio. Como símbolo, é a independência, a liberdade ou até a dignidade do criminoso. A simbolização, portanto, é um processo de auferimento das vantagens do sacrifício original. Nesse contexto, retomando temas já abordados aqui, se o sujeito pensa que Lavoisier tinha que morrer pelo bem da república ou que o feto tinha que morrer pelo bem da família, Lavoisier e o feto mortos, para ele, são símbolos mais sinceros, menos cínicos, ainda que numa consciência mal formada, de uma conquista civilizacional ou de quimeras semelhantes. 

No entanto, se há uma manipulação consciente da lógica sacrifical em benefício próprio, temos aí o fundo do poço do cinismo, em que o símbolo é instrumentalizado numa lógica individual. A clínica de aborto cujo dono defende publicamente os “direitos reprodutivos”, mas o faz apenas por interesse econômico, é um exemplo. Um juiz da Revolução Francesa que só almeje a popularidade é outro. Um terceiro, ainda mais nítido, é o de Stalin nos Processos de Moscou: aqui o sacrifício é encenado, as vítimas são escolhidas, o rito é performado com cinismo absoluto. O símbolo é reduzido a teatro — e o teatro, a poder. 

Mesmo quando o bode expiatório é reconhecido como tal, portanto, ele pode continuar funcionando — não mais como uma ilusão coletiva, mas como um artifício cínico. Nesse estágio, a violência já não é disfarçada sob o véu do tabu sagrado; ela é gerenciada, instrumentalizada e, muitas vezes, racionalizada com argumentos de ordem social, científica ou econômica. O tabu não some, mas é transferido para tapar as críticas individuais a essas grandes razões. Isso é o que poderíamos chamar de a modernidade do bode expiatório: lúcida, mas ainda prisioneira do mecanismo. 

Há aí uma perversão do processo simbólico, cuja ordem reta nos faria chegar à sinceridade selvagem, vale dizer, ao momento em que o sujeito inverte a culpa, tirando-a do bode expiatório e colocando-o a em si, o que levaria, por sua vez, à humildade: a única vantagem real de se saber criminoso. É isso, por exemplo, que se faz no ato de contrição do sacramento da penitência. Na perversão, porém, o símbolo não serve para nos libertar do mecanismo sacrificial, mas para o tornar aceitável sob um novo verniz: eficiência, progresso, ou até compaixão racionalizada.


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