Escândalo Transgênero
René Girard, ao desenvolver sua teoria do desejo mimético, mostrou que o ser humano não deseja espontaneamente: deseja aquilo que o outro deseja. Esse modelo do desejo — o outro — converte-se, em determinada fase da relação mimética, em obstáculo. Surge, então, o escândalo: aquilo que, ao mesmo tempo, intensifica o desejo e o impede de se realizar. O escândalo é, portanto, uma duplicação paradoxal da vontade — pois frustra enquanto incita. Girard afirma que o escândalo é inevitável numa sociedade inflamada pelo desejo mimético, como a nossa. E que o seu desenlace frequente é a criação de um bode expiatório: uma figura que encarna o mal que queremos extirpar, para que a comunidade se recomponha na ilusão de paz.
Tomemos essa chave de leitura para examinar a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu o direito de de homens que se veem como mulheres à cobertura, pelos planos de saúde, de cirurgias de transgenitalização e plástica mamária com próteses. Para a Corte, na medida em que esses procedimentos são prescritos por médico assistente, reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina, integrados ao SUS e incorporados ao rol da ANS, não cabe às operadoras recusá-los.
No entanto, para um reacionário, isso seria inaceitável: como admitir que os custos do meu plano aumentem para financiar uma prática imoral? A objeção não é sem lógica. Em termos de política pública, a crítica é racional, legítima e poderia perfeitamente sustentar uma reforma legislativa futura. Afinal, não é desarrazoado ponderar sobre o impacto econômico de tratamentos caros cuja justificativa envolve convicções antropológicas ainda disputadas. Mas a análise aqui proposta não é sobre o direito por vir, e sim sobre o direito como é. E mais: sobre qual deve ser a postura de quem discorda da orientação jurídica atual. Essa postura, afirmo, não pode ser de escândalo. A discordância se transforma em escândalo — no sentido girardiano — quando deixa de ser uma divergência argumentativa com um objeto claro e passa a ser um embate de desejos obstruídos. Quando o conservador vê o transgênero como aquele que possui uma cobertura que ele mesmo não tem, ou que encarece a sua própria, a mimese se instala: o outro vira obstáculo, porque é modelo.
Nesse sentido, a instrumentalização do discurso moral — a condenação ética dos atos do transgênero — não absolve o conservador do desejo de apropriação do alheio. Pelo contrário, revela. Desejar o que o outro tem (a cobertura, o direito, o reconhecimento), mesmo para negá-lo, já é estar capturado pelo escândalo. Daí a importância do décimo mandamento do Decálogo: “Não cobiçarás a casa do teu próximo [...] nem coisa alguma que lhe pertença.” Essa norma moral tem uma função de largo alcance social: desativar o ciclo do desejo mimético que leva à violência.
São Paulo, com sua sagacidade espiritual, vai ainda mais fundo. “Propter quod inexcusabilis es, o homo omnis, qui iudicas.” (Assim, és inescusável, ó homem, quem quer que sejas, que te arvoras em juiz). E por quê? Porque “in quo enim iudicas alterum, teipsum condemnas; eadem enim agis, qui iudicas.” (Naquilo que julgas a outrem, a ti mesmo te condenas; pois tu, que julgas, fazes as mesmas coisas que eles.) O que são essas mesmas coisas? Paulo não está dizendo que o conservador judicante necessariamente repete as práticas sexuais externas do transgênero, mas que o julga enquanto mimetiza seu desejo — no caso , o desejo de um plano que contemple todas as suas dores ao menor custo possível. O escândalo surge porque o desejo do outro revela o próprio, e a reação é o julgamento. Mas quem julga, diz Paulo, revela-se condenado, porque a raiz do desejo é a mesma.
A reação mais apropriada diante dessa realidade, penso, não é a negação escandalizada, mas a reconstrução da cultura antes da crise do desejo. Isso significa desmantelar a ideologia de gênero em sua origem: uma construção que amplifica o mal-estar com o corpo biológico e oferece uma solução biomédica onde deveria haver acolhimento psicológico e comunitário para reconciliação com o sexo biológico. Uma pessoa que sofre com sua identidade sexual merece cuidado — e o cuidado mais eficaz é o que impede que a crise se agrave a ponto de demandar uma intervenção cirúrgica drástica.
No entanto, quando já se chegou a esse ponto, não se pode negar a realidade concreta: trata-se de um ser humano vulnerável, cuja dor é real. A decisão do STJ tenta evitar que esse sofrimento desemboque no suicídio — uma finalidade que não pode ser ignorada, mesmo por quem discorda dos meios. Cuidar antes para que não haja necessidade de transgenitalização, e não desamparar depois — isso me parece mais próximo do juízo de um Deus que é justo, sim, mas também misericordioso, e que julga secundum veritatem, isto é, segundo a verdade que não protege somente aqueles que agem como seus donos exclusivos.