Memória e Outras Invenções


Há, segundo Aristóteles — cuja autoridade, convenhamos, ainda impõe algum respeito, mesmo em tempos de estatísticas e gráficos —, uma espécie de memória que distingue o homem dos outros animais, embora o próprio Aristóteles, se vivo fosse, talvez concedesse que certos cães lembram melhor do que certos homens. Refiro-me à memória voluntária, faculdade pela qual o espírito humano não apenas conserva, mas evoca, por vontade própria, os vestígios do passado. O boi rumina; o homem rememora.

Perder essa faculdade, portanto, é descer um degrau na escada da criação — é desumanizar-se. Não me refiro aqui à perda trágica e irremediável da memória, mas à outra, mais insidiosa e vulgar: aquela que se dá aos poucos, entre uma anotação e outra, até que o sujeito já não recorda nada sem consultar suas cadernetas, ou seus aparelhos, ou seus ajudantes eletrônicos, mais leais que discretos. Resta, então, a pergunta que vos entrego como quem entrega um espinho dentro de uma rosa: que papel cabe à técnica nesse drama? Ajuda ou atrapalha? Fortalece a memória ou a substitui?

A escrita — primeira dessas invenções e, até certo ponto, a mais charmosa — veio sob o pretexto de socorrer os esquecidos. Mas logo encontrou seus detratores, entre os quais um homem de túnica e ideias profundas chamado Platão. Em seu Fedro, ele põe na boca de um rei egípcio uma desconfiança: a escrita, longe de robustecer a memória, torná-la-ia preguiçosa. Em vez de lembrar, o homem passaria a consultar. Em lugar de nutrir a mente, empilharia palavras alheias. E nisso haveria mais aparência de sabedoria que sabedoria verdadeira. Não digo que Platão tivesse inteira razão, mas também não direi que errasse por completo.

Ocorre, porém, que a escrita não parou em Platão. Passou por pergaminhos, códices, prelos, tipografias, jornais, datilografias e computadores — este último, espécie de caixa de Pandora que contém todos os vícios e algumas virtudes. Dele, nasceu o ANKI, criatura recente, porém zelosa, que imita com engenho e arte o antigo sistema de Leitner, esse método de repetição espaçada, antes feito de papel e paciência, agora auxiliado por gráficos e sininhos.

E o que se vê, senhores, é que a roda gira e às vezes volta ao ponto de partida, com novos arreios. A técnica, que já ameaçou a memória, agora a serve. Onde antes se temia o esquecimento, hoje se cultiva a lembrança — não por mera obrigação, mas por hábito ritmado. O ANKI, que parece um joguete de estudantes, é, em verdade, uma pequena oficina de reconstrução da memória voluntária, essa mesma que Aristóteles louvava nos seus escritos.

A lição, se posso aventurar-me a sugeri-la, é singela: a técnica, como os remédios antigos, depende da dose e do momento. Quando não pretende usurpar a alma, pode ser-lhe útil. Age como criado fiel que não responde por nós, mas nos lembra, com voz cortês: “Vosso dever vos espera.” E o dever é lembrar — ao menos de vez em quando, e de preferência sem depender demais do papel ou da máquina.

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