O Nome do Bebê Não Nascido
A sensibilização sobre o aborto é, a meu ver, mais eficaz quando abordamos o mecanismo sacrificial ele coloca em jogo do que quando nos perdemos na disputa metafísica sobre o “início da vida” — que, embora importante, tende a produzir muita polarização irracional e, mesmo dentre os mais sábios, impasses conceituais. Consideremos, assim, a seguinte narrativa:
Maria (nome fictício), mãe de dois filhos pequenos, vivia nos arredores de uma grande cidade e trabalhava meio período como atendente em um supermercado. O marido, recém-desempregado, fazia bicos para sustentar a família. Quando descobriu que estava grávida novamente, ela sentiu o chão se abrir: as contas da casa já estavam em atraso, o aluguel consumia metade da renda e um terceiro filho significaria a perda total de qualquer margem financeira — além de inviabilizar, na prática, o trabalho de Maria fora de casa.
Maria buscava há tempos retornar à escola noturna para terminar o ensino médio e, futuramente, obter uma qualificação técnica. Esse era o seu plano de emancipação: conseguir um emprego melhor e dar aos filhos uma condição de vida mais digna. Mas uma nova gestação tornaria isso impossível. Ela procurou uma clínica, foi acolhida, e interrompeu a gravidez.
Nos anos que se seguiram, Maria conseguiu, com o apoio de redes locais, terminar o ensino médio e formar-se como auxiliar de enfermagem. O marido encontrou um emprego mais estável e a família, embora modesta, passou a ter segurança alimentar, acesso à saúde e à educação para as crianças. Em conversas posteriores, Maria afirmou com clareza: “foi a decisão mais difícil da minha vida, mas eu sabia que precisava cuidar dos filhos que já tinha e de mim mesma. Hoje, olhando para trás, vejo que foi o ponto de virada. Eu finalmente tive uma chance de escolher meu caminho”.
Na narrativa acima, o bebê por nascer é sem dúvida um bode expiatório, embora não seja tematizado como tal. Justamente por não ser o tema do texto, o juízo dele como obstáculo à estabilidade financeira da família e à emancipação feminina passa como muito convincente. De onde nasce essa convicção? A meu ver, ela nasce de um desejo mimético fomentado por modelos sociais fortíssimos — e amplamente difundidos — de realização pessoal, estabilidade econômica, autonomia feminina e, sobretudo, controle do próprio destino. Esses modelos, que Maria também internalizou, prometem uma forma de salvação mundana: segurança, dignidade, emancipação. E para alcançá-los, é necessário fazer escolhas “difíceis”, muitas vezes sacrificiais.
Mas o que é sacrificado? Aqui entra o ponto central: o feto torna-se aquilo que impede a realização dos desejos mais elevados propostos pelo modelo. Ele é transformado, simbólica e funcionalmente, no “culpado” — o que encarna o impedimento, o peso, a ameaça à realização plena do eu. Por isso, mesmo sem ódio, mesmo com dor, ele é eliminado. É o sacrifício sem violência visível, mas ainda um sacrifício.
Para tanto, é muito conveniente subtrair do feto, conceitual e metafisicamente, sua dignidade própria, e argumentar tão longamente quanto se queira a partir daí... Se o feto não é uma vida autônoma, ele não passaria de um pedaço de carne do corpo da mãe. A sua amputação no aborto, então, seria sem dúvida menos problemática (ainda que não deixe de ser um mecanismo intrafísico de bode expiatório). Há, no entanto, uma incongruência existencial grave nesse modo de ver. De fato, mesmo entre os que negam a plena individualidade do feto, raramente vemos que o aborto seja vivido com a mesma neutralidade afetiva presente, digamos, na remoção de um apêndice inflamado. Há culpa, dor, silêncio, lembrança recorrente - ainda que involuntária —, e até luto. Essa experiência existencial já revela que há mais em jogo. E é aqui que o vocabulário mimético oferece sua força: mesmo sendo (aos olhos de alguns) um “pedaço de carne”, esse pedaço carrega uma função simbólica tão intensa que o melhor nome para ele é o de grande pequeno sacrificado.
O que o cristianismo faz é lançar luzes sobre esse predicado do feto, que, na narrativa acima, fica convenientemente oculto. Poder-se-ia argumentar que o cristianismo leva sua superstição, pintada com cores metafísicas, a uma luta legítima da mulher, e que, portanto, seria imperioso furar esse véu de ignorância e olhar os fatos como eles são. No entanto, é justo o contrário: é a tal luta legítima da mulher que esconde um mecanismo de bode expiatório. E a prova disso é a tentativa desesperada de transformar o tabu do aborto em símbolo de emancipação ao chamá-lo, com ridículo próprio e vergonha alheia, de "interrupção voluntária da gravidez". Trata-se, porém, de mais um mecanismo de bode expiatório. Essa expressão popular de fundo religioso, "bode expiatório", é mais rica de significado e ilumina melhor o problema do aborto do que todas as defesas positivistas do direito da mulher.