Reivindicando o Objeto



O aprendizado, mais do que uma mera função do QI, depende substancialmente do esforço contínuo e deliberado. Essa perspectiva é corroborada pelas pesquisas apresentadas em "Peak: Secrets from the New Science of Expertise", de Anders Ericsson, que demonstram como a prática intencional e focada é o verdadeiro motor da aquisição de habilidades e do desenvolvimento intelectual. O conceito de esforço deliberado desfaz o mito da genialidade inata e reforça a ideia de que o desempenho superior está ao alcance de quem persevera com dedicação, com muita independência do ponto de partida cognitivo.

No entanto, um desvio trágico dessa rota do esforço reside na tendência humana de transferir a responsabilidade pela própria insuficiência intelectual para fatores externos. Atribuir culpa aos outros — seja a professores, colegas, instituições ou grupos sociais — pode parecer, a princípio, um mecanismo de defesa lógico, mas, ao aprofundar-se essa análise, percebe-se um viés moralizador subjacente. Todos nós carregamos a propensão de moralizar o comportamento alheio, sobretudo quando isso serve para ocultar falhas pessoais ou faltas em nosso empenho. Tal atitude, embora compreensível, distorce o processo autocrítico necessário para o crescimento intelectual e perpetua a estagnação.

Nesse contexto, discursos políticos sacrificiais, como os formulados em termos binários — esquerda boa versus direita ruim, conforme análise de Marilena Chauí, ou o inverso, na perspectiva de Olavo de Carvalho — operam como poderosos instrumentos de atribuição coletiva de culpa. Esses discursos simplificam a complexidade social ao criar bodes expiatórios ideológicos que absorvem as frustrações individuais e coletivas. Assim, o leitor ou ouvinte se alinha a um dos polos e projeta sobre o outro todas as mazelas pessoais e até nacionais. Por exemplo, um estudante universitário com inclinações conservadoras quanto aos costumes ou à estética, imerso num ambiente acadêmico predominantemente progressista, pode enfrentar dificuldades para compreender certos conteúdos por uma resistência interna. Nesse cenário, a responsabilidade pelo seu distanciamento do diálogo cultural é externalizada na figura dos professores ou das correntes contrárias a sua visão, reforçando a polarização.

Discursos ideológicos rígidos, portanto, funcionam como escudos simbólicos que permitem ao indivíduo evitar lidar com dores mais íntimas — como a insegurança frente à própria capacidade intelectual ou a dificuldade de adaptação a ambientes complexos. E nada nos parece tão nosso quanto aquilo que nos protege do sofrimento. A construção de um mundo dualista, em que “nós” somos os puros e justos, enquanto “eles” são corruptos e perniciosos, todavia, legitima a violência simbólica e a exclusão social, tudo em nome de um suposto “bem maior”. Essa simplificação radical destrói pontes de diálogo e inviabiliza a crítica construtiva, ao transformar a diferença em antagonismo irreconciliável.

Para superar esse impasse, é essencial reivindicar o objeto do conhecimento e da discussão, afastando-se da personalização exacerbada dos conflitos. O foco não deve residir em quem diz, mas no que é dito — ou seja, na análise rigorosa das ideias, independentemente da identidade do emissor. Essa mudança de perspectiva possibilita a descentralização do ego e o cultivo de uma postura aberta, que reconhece as próprias limitações e aposta no esforço como caminho para o aprimoramento intelectual. Somente assim é possível transcender a polarização e avançar em um diálogo cultural autêntico e enriquecedor.

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