Um Voto contra a Preguiça


René Girard ensinou-nos que o desejo humano não é espontâneo nem autossuficiente; ele é mediado. Não desejamos um objeto pelo que ele é, mas porque o vemos nas mãos ou sob o domínio de um modelo ao qual aspiramos nos igualar. O objeto é um sinal: o que se busca, em última instância, é ser como o outro. Essa concepção mimética do desejo ilumina de maneira original um dos principais insights do livro Atomic Habits, de James Clear. Nele, o autor observa que, antes de tentarmos instaurar um hábito, é preciso definir que tipo de pessoa queremos ser — ou, em termos girardianos, qual modelo desejamos imitar. Todo hábito é, portanto, uma inscrição prática num projeto de identidade. Não se trata apenas de fazer, mas de tornar-se.

Partindo desse enquadramento, tomo ainda como outro ponto de partida uma pressuposição compartilhada: eu e meus leitores queremos ser pessoas ativas, não entregues à preguiça. Este é um desejo compatível com muitos modelos de excelência, entre os quais Cristo, cuja diligência incansável é reiterada nos Evangelhos — de madrugada nos montes, à beira do poço ao meio-dia, entre multidões e tempestades, Cristo é o oposto da inércia. Contudo, há um inimigo sorrateiro da diligência que habita o cotidiano, camuflado em seu manto de doçura e ancestralidade: a siesta.

A siesta não é um mero cochilo; é uma emboscada existencial, um chamado morno que emerge entre uma garfada e outra de feijão com arroz, sussurrando promessas de dez minutos que duram uma eternidade. É o momento em que o sofá nos olha com olhos de ternura e a cama, essa Mefistófeles de lençóis limpos, canta sua cantiga de ninar ao sol do meio-dia. A siesta é, pois, uma entidade astuta, que se insinua com a falsa aura da legítima pausa, mas que muitas vezes se converte na antessala do desânimo vespertino.

Vencer a siesta não é apagar da alma o desejo de repouso. Não se trata de negar o que os Padres da Igreja chamariam de propassio. Entre os autores patrísticos, a propassio era a primeira movimentação afetiva da alma diante de uma paixão — uma inclinação inicial, não voluntária, ainda sem consentimento moral. A passio, por sua vez, era a adesão consciente a esse impulso. O que proponho, pois, não é que deixemos de sentir a atração por uma soneca pós-almoço, mas que a reconheçamos como o que é: um impulso natural que não precisa, necessariamente, governar-nos.

É justamente ao tomar consciência desse obstáculo que se pode superá-lo. E essa superação começa por demolir os pseudo-argumentos que o revestem de respeitabilidade. A siesta tem, de fato, respaldo cultural — os espanhóis, povo de alta civilização, a institucionalizaram. Mas não queremos ser espanhóis (ao menos não aqui). Queremos ser diligentes. A pergunta fundamental, como sugere James Clear, é: a minha ação — neste caso, deitar-me após o almoço — é um voto em favor de qual modelo? Cada ato repete, como num plebiscito cotidiano, uma declaração: quero ser como tal pessoa. Se a siesta é um voto, ela tende a eleger o modelo do preguiçoso.

Entendamos, então, os mecanismos desse hábito. Segundo Clear, todo hábito se estrutura a partir de gatilhos, que sinalizam ao cérebro que está na hora de agir. No caso da siesta, o mais evidente é a visão da cama — sua geometria horizontal é uma súplica silenciosa. Mas há ainda um anterior, mais fisiológico: a indulgência, o exagero alimentar no almoço. Quando se come demais, o corpo reivindica seu direito digestivo em forma de prostração. O excesso de comida prepara o palco para a queda.

Para escapar desse ciclo, é preciso uma estratégia positiva de substituição. Diligência não se constrói apenas por negação da preguiça, mas por afirmação de ações alternativas. E aqui a proposta de Clear é especialmente eficaz: defina um propósito concreto. Isso significa uma ação clara, com tempo e local definidos. Tomar um café, arrumar a cozinha, continuar o trabalho da manhã, fazer uma caminhada ou até rezar o terço — em pé, evidentemente. A verticalidade é, nesse contexto, uma aliada espiritual e fisiológica. Afinal, não há gatilho mais mortal nesse campo do que a posição horizontal.

Por fim, há o fator ambiental. O quarto, a cama, o travesseiro... todos são elementos simbólicos e sensoriais que disparam o desejo de dormir. Evitá-los é parte da estratégia. Radicalmente, pode-se evitar inclusive a própria casa. Mude de ambiente. Vá à rua. Saia de cena como quem abandona o palco de um vício. Aqui, o exemplo dos soldados americanos no Vietnã é ilustrativo: muitos dos que usavam heroína no front largaram o vício ao retornar ao lar, simplesmente porque os gatilhos  ambientais haviam desaparecido. Se a nossa heroína é a siesta, talvez a rua seja nossa reabilitação. Que o asfalto e o céu aberto nos inspirem mais do que o travesseiro.


Mais Populares