Uma Contradição Iluminista



O fim trágico de Antoine Lavoisier, guilhotinado em 1794, é um sinal eloquente do terror que corroeu a Revolução Francesa por dentro. Pai da química moderna, homem de ciência e razão, foi sentenciado à morte sob a justificativa de que “a República não precisa de sábios”. A frase, atribuída ao juiz Jean-Baptiste Coffinhal, ressoa como um eco terrível do colapso da promessa iluminista de esclarecimento. Lavoisier, cuja vida foi dedicada à mensuração exata, à nomeação precisa, à decomposição racional dos fenômenos naturais, sucumbiu no altar de um movimento que, ao mesmo tempo em que prometia a vitória da razão sobre a superstição, entregava-se aos mecanismos mais primitivos do mito.

Esse argumento de utilidade social – de que a morte de um homem, por mais virtuoso ou relevante que seja, pode ser justificada pela sua inconveniência política – não é novo. A meu ver, ele corresponde à lógica que, na boca de Caifás, leva à condenação de Jesus: “convém que morra um só homem pelo povo e que não pereça toda a nação” (Jo 11,50). Trata-se da racionalização de um sacrifício, apresentado não como um ato arbitrário, mas como exigência da ordem coletiva. A singularidade, seja ela do Cristo ou do cientista, é esmagada em nome de uma totalidade abstrata: a nação, a república, o povo. A secularização dessa lógica, visível na Revolução Francesa, não a distancia do mito; ao contrário, revela o quanto o mito pode se acomodar às roupagens políticas modernas. Já o próprio gesto de Caifás, longe de ser apenas religioso, foi essencialmente político. Nesse sentido, os líderes revolucionários não traem os ideais iluministas: eles continuam a operar sob a lógica da razão de Estado, da utilidade coletiva, da engenharia social — todos temas que o iluminismo político acolheu.

A traição ao Iluminismo, no entanto, ocorre em outro ponto: no ponto mais central do esclarecimento. A pergunta “Por que Lavoisier tem que morrer?” não admite resposta racional. Se o discurso político pretende encobrir o sacrifício com razões de utilidade pública, esse véu se rompe quando se exige uma justificação última, não tautológica. O que se revela, nesse ponto, é a dimensão mítica do gesto revolucionário. René Girard observa que os historiadores revolucionários não acolhem o iluminismo quando narram a Revolução: deixam intacto o mecanismo da violência unificadora, do bode expiatório, sem o interrogar em profundidade. Para eles, trata-se de um tabu. A racionalidade iluminista falha diante do elemento mítico que sustenta a narrativa revolucionária: precisa ocultá-lo para sobreviver como discurso de emancipação. Quando o irracional emerge – a execução de um cientista pela república da razão – a única saída é, na melhor das hipóteses, o silêncio ou, na pior,  a justificação cínica.

Resta, então, a questão decisiva: até que ponto o iluminismo contido na Revolução Francesa engendra, por suas próprias premissas, o seu contrário? A resposta a essa pergunta exige distinguir o bode expiatório mítico do cordeiro de Deus. Ambos remetem a figuras sacrificiais, ambos ultrapassam a pura racionalidade iluminável, mas só o segundo — o cordeiro cristão — opera como chave crítica que transcende o sistema narrativo em que o primeiro se encontra encerrado. O sacrifício de Cristo não apenas expõe, mas desmantela o mecanismo do bode expiatório. Ele se oferece não como necessidade política, mas como denúncia da lógica que, de Abel a Lavoisier, verte sangue em nome da paz social. O cordeiro, por isso, permite reconhecer, desde fora do texto e na própria estrutura dos relatos históricos, o padrão sacrificial que eles muitas vezes tentam dissimular.

É aqui que o iluminismo, ameaçado pelo seu efeito anti-iluminista, encontra um antídoto. A convicção cristã de que uma narrativa pode ser estruturada como indicação, ainda que sutil, de um alguém para bode expiatório é uma contribuição epistemológica profunda. Ela impede que o discurso histórico naturalize o sacrifício, que o romantize como necessário ou inevitável. Permite, ao contrário, lê-lo como sintoma de um mito persistente, não redutível à razão, mas que deve ser discutido por ela. A história de Lavoisier, à luz desse caveat cristão, deixa de ser apenas um capítulo sombrio da Revolução para se tornar um índice das ambiguidades internas do projeto moderno. O que fracassou ali não foi apenas o destino de um homem, mas a possibilidade mesma de uma razão que não sacrifique para se afirmar.


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