A Nobre Arte de Ser Alguém
No coração do século XIX francês, quando Paris se convertia em vitrine da modernidade ocidental, Charles Baudelaire surge como o poeta e crítico por excelência de sua época. Seu ensaio O Pintor da Vida Moderna (1863), publicado originalmente no jornal Le Figaro, é uma tentativa seminal de compreender o espírito moderno por meio de uma figura paradigmática: o artista Constantin Guys, identificado por Baudelaire apenas como “G”. A obra foi escrita em meio às reformas urbanísticas conduzidas por Georges-Eugène Haussmann, sob os auspícios do imperador Napoleão III — uma transformação profunda que reconfigurou o tecido da cidade: ruas estreitas e escuras deram lugar a grandes avenidas simétricas, praças arborizadas e iluminação a gás. Embora Haussmann jamais seja mencionado diretamente no ensaio, a nova Paris — com sua multidão anônima, seus ritmos acelerados e sua estética da circulação — é o pano de fundo silencioso e necessário da sensibilidade que Baudelaire tenta descrever e legitimar.
É nesse cenário em que o transitório torna-se belo, e o efêmero digno de arte, que o conceito de distinção ganha centralidade no texto. Baudelaire aplica essa ideia tanto ao dândi quanto à mulher elegante, à moda e ao próprio artista moderno. Em todos esses casos, a distinção opera como um gesto de superioridade contra o vulgar, contra o ordinário e o rebaixado pelo gosto burguês ou pelo automatismo. O dândi é aquele que recusa a banalidade do útil e faz de sua vida uma obra de arte. A mulher elegante, cultivando o artifício com perfumes e cosméticos, transforma-se em poema vivo único. A moda, por sua vez, é celebrada não como vaidade passageira, mas como uma forma legítima de invenção do novo. E o artista moderno — o pintor da vida moderna — é aquele que tem sensibilidade bastante para captar essas distinções fugidias e convertê-las em forma.
No entanto, à luz do pensamento de René Girard, essa noção de distinção adquire contornos mais ambíguos. Girard mostra que o desejo humano é essencialmente mimético: não desejamos objetos de maneira autônoma, mas porque os vemos desejados por outros. Surge, assim, a figura do mediador do desejo — alguém cuja admiração por determinado objeto ou modo de ser faz com que passemos a desejá-lo também. Nessa dinâmica, a tentativa de se distinguir da massa não elimina o fato de que os critérios de distinção continuam sendo moldados mimeticamente: o desejo de ser único nasce porque todos desejam ser únicos, e esse desejo comum acaba gerando rivalidade. A distinção, portanto, mesmo quando se apresenta como um gesto solitário e nobre, é atravessada pela lógica competitiva do desejo mimético: todos disputam um mesmo tipo de reconhecimento, todos querem ser vistos como diferentes — e por isso acabam se tornando paradoxalmente semelhantes.
Essa tensão aparece de modo particularmente agudo em um trecho revelador do ensaio, no qual Baudelaire afirma que a democracia “nivelou tudo”, destruindo os graus fixos que antes separavam os sujeitos de seus modelos ou mediadores. Num mundo aristocrático, o desejo era regulado por barreiras simbólicas claras. No mundo democrático, a horizontalidade generalizada obriga o sujeito a inventar novas formas de distinção, sob pena de dissolver-se na multidão. É aqui que o dândi se destaca: ele é aquele que se recusa a ser confundido com o homem comum, reinventando marcas de diferença — na postura, no traje, no comportamento — que lhe garantam, mesmo que por pouco tempo, uma aparência de individualidade.
Essa busca pela distinção nasce, em última instância, de uma angústia profunda: a da indiferenciação. E essa, por sua vez, remete à necessidade metafísica de reconhecimento. Só é possível ser reconhecido como indivíduo se houver algo minimamente próprio, algo que não possa ser confundido com o que já existe. Surge então uma competição pelo ser, uma rivalidade cujo prêmio é ter uma identidade, ser alguém e não apenas mais um. O artista “G.” resolve provisoriamente esse impasse ao fixar em traços rápidos o que há de mais passageiro: a elegância do instante, o movimento da rua, o corte novo de um vestido. Ele se entrega à captação do presente, não porque o considere eterno, mas justamente por saber que ele é fugidio — e, portanto, excepcional.
A mulher elegante, com sua roupa da última estação, encarna essa tentativa de diferenciação no efêmero. A própria moda, na qual Baudelaire vê uma síntese do transitório e do eterno, funciona como um campo privilegiado de invenção estética: um decote mais ousado, uma bainha mais curta, um detalhe que marca a diferença entre o “agora” e o “ontem”. O pintor moderno não procura o eterno no sentido clássico, mas aquilo que se destaca aqui e agora como sinal de originalidade frente ao passado imediato.
Mas é justamente aqui que o projeto moderno, como Baudelaire o concebe, começa a mostrar sua fenda trágica. A busca pelo novo se acelera a tal ponto que se torna um fim em si mesmo. A moda já não distingue mais uma geração da outra, mas apenas uma semana da anterior. O artista, antes historiador sensível do presente, vê-se transformado em cronista de uma sucessão vertiginosa de gestos sem substância. Já não há progresso estético, nem avanço de uma época para outra — apenas substituição incessante, movimento que gira no vazio. A distinção, que antes funcionava como resistência à vulgaridade, converte-se em caricatura de si mesma. O novo já não é invenção, mas apenas repetição disfarçada. Em sua ânsia de se distinguir, o homem moderno termina por se perder. E no fim do processo, resta apenas a vertigem de um presente sem espessura, sem memória e sem direção.