A Vocação Divina como Escândalo: entre a misericórdia e o ressentimento



A figura do ressentimento religioso, especialmente no contexto de grupos que reivindicam para si a mediação de vocações divinas, ainda carece de uma análise mais matizada. Neste breve ensaio, proponho-me a comentar um caso específico, que conheci por meio de um relato pessoal de amigo próximo, e que serve como ponto de partida para refletir sobre a complexa situação existencial de alguém a quem é oferecida, de maneira formal, a possibilidade de deixar uma organização cuja condição de sócio se baseava em um "chamado divino".

No cerne do problema está o paradoxo que essa abertura de portas para saída representa. Se a vocação era realmente divina — e, por definição, as vocações de Deus são irrevogáveis —, como pode a própria instituição dizer a alguém que está livre para partir? Se, ao contrário, a vocação não era autêntica, mas uma construção ou ilusão, então a mediação que a instituição reivindica para discerni-la se mostra falha. Coloca-se o sujeito, assim, diante de uma dissonância espiritual profunda, isto é, diante de um escândalo.

A hipótese mais coerente, à luz do acontecido a esse amigo, é a de que jamais houve, de fato, uma vocação divina. Já antes da admissão à organização, havia sinais discretos de fragilidade na saúde do candidato, os quais foram comunicados. Apesar disso, entendeu-se, naquele momento, que tais limitações não comprometeriam a viabilidade da entrega vocacional. O tempo, contudo, mostrou o contrário: a condição de saúde agravou-se de modo tal que tornou impossível sustentar as exigências ordinárias daquela forma de vida. Ora, se a vocação fosse autêntica — no sentido de ter sido um chamado pessoal e eficaz da parte de Deus —, não se daria essa contradição entre o chamado e a possibilidade concreta de resposta. Por conseguinte, é de se concluir que a vocação nunca existiu; tratou-se, antes, de um erro de discernimento. E isso nos leva à pergunta decisiva: por que se reconheceu como vocação divina aquilo que, desde o princípio, já apresentava sinais de inviabilidade? 

Para responder a essa questão, recorro a uma passagem muito elucidativa de São João Crisóstomo, recolhida por São Tomás de Aquino na Catena Aurea, ao comentar Mateus 23, 15. Trata-se do versículo em que Jesus denuncia o zelo proselitista dos fariseus: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito...”. Sobre isso, diz o santo:

“Non autem propter misericordiam, volentes eum salvare quem docebant; sed aut propter avaritiam, ut, additis in synagogis Iudaeis, sacrificiorum adderetur oblatio; aut propter vanam gloriam. Qui enim seipsum mergit in gurgite peccatorum, quomodo alterum a peccatis velit eripere? Numquid magis misericors potest alteri aliquis esse quam sibi? Ex ipsis ergo actibus ostenditur qui propter Deum aliquem vult convertere, aut propter vanitatem.”

("Não era por misericórdia que queriam salvar aquele a quem instruíam, mas ou por avareza — para que, com o aumento do número de judeus na sinagoga, aumentassem também as ofertas dos sacrifícios — ou por vanglória. Pois quem a si mesmo mergulha no abismo dos pecados, como poderá querer arrancar outro dos pecados? Acaso alguém pode ser mais misericordioso com o outro do que é consigo mesmo? Pelos próprios atos, portanto, se revela se alguém quer converter outro por causa de Deus ou por vaidade.")

Dessa passagem, sobressai uma pergunta que traduz um realismo espiritual contraintuitivo, mas profundamente enraizado na tradição patrística: "Numquid magis misericors potest alteri aliquis esse quam sibi?" — “Acaso alguém pode ser mais misericordioso com o outro do que é consigo mesmo?” A força dessa interrogação repousa na compreensão de que a misericórdia não é uma disposição espontânea ou genérica, mas nasce da experiência íntima da própria fragilidade. O fariseu, que se enxerga como cumpridor da lei, pode assim se ver justamente porque não se reconhece vulnerável — porque é, por assim dizer, um “animal são”: não é leproso, não é cego, não está manco, não tropeça nas exigências da norma. Por não perceber em si a necessidade da misericórdia, é incapaz de exercê-la com os outros. E, nesse estado de ignorância ativa, impõe ao próximo os mesmos pesos que carrega com naturalidade, presumindo que também o outro deveria ser capaz de cumpri-los. A hipocrisia, nesse caso, não está em um fingimento consciente, mas na cegueira de quem, por nunca ter provado o limite, julga que a vocação divina é mais uma questão de esforço ou adaptação do que de graça e, assim, transforma-a em fardo impiedoso.

No entanto, ainda que o recrutamento tenha sido motivado por intenções imperfeitas — por vanglória, por número, por prestígio institucional —, Deus, cuja providência extrai bens de males, pode permitir que o prosélito se edifique por meio da provação, desde que este seja capaz de reconhecer a hipocrisia original da promessa vocacional. (Senão, ficará para sempre imerso no escândalo). A hipocrisia farisaica está precisamente em dizer que é de Deus aquilo que é apenas da instituição, da conveniência ou do desejo de engrandecimento.

Foi o que, no caso referido, acabou por acontecer. Meu amigo, ainda que ferido, conseguiu reconciliar-se com seu passado, reconhecendo o bem recebido sem negar o erro de origem. Mas nem todos os que passam por experiências religiosas marcadas por promessas absolutas e saídas silenciosas ou ambíguas têm o mesmo desfecho. Muitos permanecem feridos. E a ferida mal cicatrizada tende a se expressar como ressentimento.

É esse ressentimento que, por vezes, se traduz em críticas descabidas e fantasiosas contra as organizações religiosas. Quando esse ressentimento se articula em linguagem pública, pode atingir a forma de acusações sensacionalistas e teorias conspiratórias. É o que observa Austin Ruse em seu artigo “The Coordinated Global Assault on Opus Dei”, publicado na Crisis Magazine. Ali, Ruse se dedica a rebater um conjunto de críticas dirigidas ao Opus Dei, criticando-as por sua vez por seu exagero, sua falta de veracidade e seu tom acusatório. Ele aponta, corretamente, que há uma indústria do escândalo religioso que lucra com esse tipo de denúncia.

No entanto, o texto de Ruse incorre num erro simétrico ao das vítimas ressentidas. Em vez de responder com lucidez e caridade, Ruse recorre à ironia e ao desprezo, ridicularizando as dores alheias e desqualificando aqueles que não se adaptaram ao modelo proposto pela instituição. Ele reforça, assim, a lógica da rivalidade: de um lado, vítimas que querem destruir a instituição que não as acolheu; de outro, apologetas que a defendem com intransigência sarcástica. O escândalo inicial permanece como ponto de atração das forças — e todos giram em torno dele, disputando o monopólio da verdade ou da dor.

Mais promissora para o futuro dessas instituições seria uma defesa que não se furtasse à autocrítica. Não uma negação completa do discurso de vocação divina, mas uma purificação dele — uma consciência maior dos limites da mediação institucional da vontade de Deus e dos riscos do proselitismo sem misericórdia. A defesa mais eficaz da vocação seria aquela que, em vez de se fechar contra as críticas, reconhecesse os perigos da própria retórica e soubesse dizer, com verdade evangélica, que Deus não é possuído por nenhuma organização.

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