De Volta à Caverna

 

Chamar Guilherme Freire de conservador faz tanto sentido quanto dizer que a pimenta é um conservante. Ela o é, mas reduzi-la a esse papel seria uma injustiça contra seu sabor intenso, seu poder de provocar e de transformar até os pratos mais insossos. Algo semelhante se passa com o papel de Freire no debate filosófico contemporâneo: se, de um lado, há em sua fala elementos que podem ser enquadrados como conservadores — em especial seu apreço pelo permanente, pelo enraizado, pelo clássico —, de outro, é no efeito provocador de sua linguagem, na maneira como ele retira a filosofia do cativeiro das bibliotecas para lançá-la nas ruas, nas redes e nos conflitos do cotidiano, que reside o centro de sua relevância. Ele apimenta a conversa filosófica: não adoça, não neutraliza, não estetiza em demasia. Corre o risco de ser mal interpretado por quem busca um saber desidratado, asséptico, acadêmico — e parece achar que vale a pena correr esse risco.

Talvez não haja leitura mais emblemática desse estilo do que a que Freire faz do Mito da Caverna de Platão. E, curiosamente, essa leitura, embora provocadora, é bem temperada: não se rende nem ao extremo do moralismo nem à indiferença niilista. Ao identificar o sol do mito com o bem supremo, o Agathon, Freire poderia escorregar numa leitura autoritária do papel do filósofo, que, tendo contemplado o bem, julga-se autorizado a impô-lo aos outros. Em termos políticos, essa postura degenera facilmente em tirania ilustrada; no plano das relações pessoais, em chatice moralista. Mas é justamente aqui que a interpretação freireana encontra equilíbrio. O bem, para Freire, não é coercitivo por ser absoluto — ao contrário, ser absoluto o torna fonte de compaixão. O filósofo retorna à caverna não como legislador, mas como alguém tocado pelo sofrimento dos prisioneiros. Seu gesto é político, sim, mas profundamente enraizado em uma ética do amor: ele não arrasta ninguém à luz, convida. Não ordena a visão, mas oferece seus olhos feridos como testemunho.

É nesse ponto que a leitura de Freire se torna instigante e próxima de uma hermenêutica girardiana do mito platônico. A caverna é, por essência, o espaço da rivalidade mimética: sombras projetadas, desejos refletidos, violências difusas. Ela precisa ser destruída — mas não para dar lugar a uma nova caverna, reformada segundo alguma ideia privada de bem. O que se exige não é uma reestruturação, mas uma refundação. E essa refundação só pode ocorrer sobre o alicerce do amor, ou, em linguagem mais próxima da tradição cristã que Freire respeita e fomenta, sobre o modelo vertical da imitação de Cristo — um modelo de paz sobrenatural, que quebra a lógica horizontal do desejo competitivo. A saída da caverna, nesse sentido, não é apenas epistemológica, mas também antropológica e escatológica: trata-se de sair de uma economia de bode expiatório para uma economia de sacrifício frutífero.

É nesse ponto que se revela uma limitação significativa — e trágica — na abordagem de Freire: sua concepção de filósofo ainda conserva traços fortes de educador. Mas a caverna não se desfaz no conforto burguês de uma sala de aula: desfaz-se em cruzes. O filósofo que retorna à caverna não será apenas zombado — será sacrificado. A iluminação que ele recebeu não é comunicável por argumentos, mas por martírio. Antes de ensinar, o filósofo precisa sofrer; antes de consolidar discípulos, ele será desfigurado pela turba que o vê como ameaça à estabilidade das sombras. O próprio Platão sugere isso com o desconforto físico e existencial do filósofo que regressa, cego pelas luzes exteriores e desajustado à escuridão interior. Esse desajuste é o prenúncio do linchamento, não da aula magna.

Essa crítica pode ser dura, mas ela não é falsa. Ademais, ela não busca desmontar o edifício do pensamento freireano, mas expor suas tensões mais fecundas. O que se está a dizer não é que Freire esteja errado ao propor uma pedagogia da compaixão, mas que essa pedagogia só se realiza plenamente se reconhecer que o sábio platônico não é, a princípio, um educador, mas uma vítima que se escolhe como tal. O retorno à caverna é, no fim, uma descida sacrificial. O verdadeiro filósofo, o que viu o sol, não é apenas aquele que pensa mais alto, mas o que ama mais fundo. E amar, nesse mundo, ainda custa caro.

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