O Formato de Luta
A memória declarativa — também chamada de explícita — é aquela que se deixa contar. É o tipo de lembrança que se oferece à linguagem, que se pode descrever em palavras ou números, como quem desenha com a ponta do dedo o mapa de uma cidade conhecida. Trata-se da memória dos fatos e dos conceitos, dos nomes, das fórmulas, dos marcos históricos, das doutrinas jurídicas. É quando o aluno sabe, por exemplo, que o artigo 37 da Constituição trata dos princípios da Administração Pública, e pode recitá-los, um a um, como quem declama os versos de uma poesia decorada — ainda que talvez não os tenha visto em carne viva numa repartição qualquer.
Já a memória implícita é a que não se diz, mas se mostra. Vive nos gestos que executamos sem pensar, como amarrar o tênis ou andar de bicicleta. É um saber do corpo, do hábito, do automatismo que se esconde sob a superfície da atenção. O cérebro, nesses casos, já aprendeu — mas não pelo discurso, e sim pela repetição. Não se lembra com clareza da primeira vez que se deu o laço no cadarço, mas os dedos sabem o caminho. Em contexto acadêmico ou profissional, é essa memória que se ativa quando o estudante reconhece, sem raciocínio formal, uma pegadinha típica do examinador; ou quando o cirurgião sente, pela resistência do bisturi, que o tecido não é o que esperava.
É nesse terreno onde as duas memórias se entrelaçam que surge o que se pode chamar de formato da luta. A expressão designa o conjunto de condicionamentos, automatismos e reflexos desenvolvidos para enfrentar, na prática, o campo real de aplicação do conhecimento. O advogado que sobe à tribuna para uma sustentação oral sabe o conteúdo — mas precisa saber, também, como reagir ao improviso, ao olhar do desembargador, à réplica inesperada da parte contrária. O piloto de avião pode ter decorado os manuais de voo, mas, diante da falha de um motor a milhares de pés, precisa operar não com a teoria, mas com a memória muscular de quem já ensaiou aquele gesto mil vezes no simulador. O aluno, na hora da prova, tem poucos minutos para cada questão — e o tempo não perdoa quem consulta a teoria em vez de reconhecê-la de pronto. O combate exige mais que saber: exige saber sob pressão.
A teoria, isoladamente, não prepara para o impacto. O boxeador pode estudar todos os tratados sobre golpes, equilíbrio e respiração. Pode conhecer o nome de cada músculo e os ângulos ideais de ataque. Mas, se nunca entrou num ringue, se nunca sentiu o peso de um soco real, a surpresa do contra-ataque, o suor que escorre nos olhos, o corpo que hesita na última esquiva — ele ainda não está pronto. É só na luta que se aprende o ritmo da luta. O formato da luta não se lê: se vive, se treina, se repete até que o cérebro, a pele e o tempo formem uma só memória.