Em Defesa da Cacofonia Democrática

 



O dilema contemporâneo da regulação da internet no Brasil revela um embate entre o direito à livre expressão e a preservação do espaço público como arena democrática. Carmen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal, ao afirmar que “censura é proibida constitucionalmente, eticamente, moralmente, e eu diria até espiritualmente”, chama atenção para o risco de uma internet calada, na qual cada indivíduo se torna um soberano absoluto em uma ilha onde só ouve a própria voz. Contudo, seu alerta sobre os “213 milhões de pequenos tiranos soberanos” levanta uma questão profunda sobre a forma como o conceito de público tem sido apreendido.

A crítica segundo a qual o debate atual sobre a internet permanece aprisionado a uma concepção estatal do público — em detrimento de uma abordagem mais plural — é essencial. A dissociação entre Estado e público permitiria visualizar a internet como uma esfera pública multifacetada, habitada não por súditos ou inimigos da verdade, mas por cidadãos com visões diversas, muitas vezes contraditórias. O desafio reside em reconhecer essa pluralidade sem criminalizá-la sob o rótulo de antidemocrática. Há, nesse sentido, uma aproximação inquietante entre o discurso da ministra e o dos libertários digitais: ambos negam à internet relevância pública autônoma, restringindo-a a um domínio privado e individualizado.

Tanto os defensores de uma rede sem qualquer regulação quanto os que advogam por forte intervenção estatal partem do pressuposto de que a internet é tecida por interesses exclusivamente privados, e não um meio de alcançar bens públicos. Isso leva os primeiros a excluir completamente a mão do Estado, e os segundos a desfigurar o cidadão em imagem tirânica, quando, na verdade, trata-se de sujeitos inseridos em um complexo ecossistema informacional — sujeitos, por vezes, mal informados, mas ainda participantes legítimos do debate público. A classificação dos usuários como “tiranos” ignora os mecanismos sociais e culturais que sempre moldaram as opiniões e deslegitima manifestações populares que, ainda que controversas, fazem parte do jogo democrático.

É evidente que os algoritmos influenciam a formação de bolhas cognitivas, criando zonas de segurança que corroem o debate público. Tal fenômeno, por ser voluntariamente estruturado e potencialmente manipulador, pode e deve ser objeto de regulação. No entanto, esse controle não pode se estender à opinião individual, mesmo quando esta se expressa de forma caricata ou emocional. O exemplo das eleições entre Haddad e Bolsonaro, com as polêmicas em torno do suposto “kit gay”, ilustra como imaginários foram mobilizados para fins políticos. Ainda que tais narrativas conservadoras causem o desconforto do absurdo nos progressistas e se apoiem em premissas frágeis, elas não devem ser interditadas sob a égide da censura em nome da democracia, pois fazem parte, elas mesmas, do dissenso democrático.

Portanto, qualquer proposta de regulação da internet deve estar alicerçada na distinção entre opinião e manipulação sistemática da informação. Regulamentar algoritmos e sua arquitetura é uma necessidade política; censurar opiniões, contudo, é abdicar dos princípios democráticos. O espaço público digital precisa de regras — mas também de respeito à divergência, à multiplicidade e à imperfeição do discurso popular. Entrar na ágora é aceitar a cacofonia, a gagueira e até as simplificações tontas como sinais de vitalidade democrática, e não como sintoma de tirania.

Mais Populares