Supersalários do Funcionalismo: Entre o Democrático e o Demagógico


Raymundo Faoro, no primeiro capítulo de Os Donos do Poder, oferece ao leitor uma chave interpretativa perspicaz para compreender a formação histórica do Estado português e, por consequência, da administração pública brasileira. Portugal, segundo Faoro, não passou pelo processo clássico do feudalismo europeu, baseado na descentralização do poder, na atomização da soberania e na construção de uma aristocracia territorializada. Ao contrário, desenvolveu-se como um Estado centralizado desde os seus primórdios, forjado em guerras de reconquista e nutrido pelos despojos. Essa gênese peculiar gerou o que Faoro chama de Estado patrimonial, no qual a estrutura estatal se identifica com o patrimônio do soberano, e as fronteiras entre o público e o privado são sistematicamente dissolvidas em favor da apropriação pessoal da coisa pública.

Nesse contexto, emerge uma figura essencial à consolidação e ao funcionamento desse tipo de Estado: a nobreza da toga. Distinta da nobreza da espada, cuja legitimidade decorre da hereditariedade e da força bélica, a nobreza da toga afirma-se pela expertise jurídica, pelo exercício das letras, pela técnica do governo e pela proximidade com o monarca. Em vez de empunhar armas, empunha códigos, doutrinas e pareceres. Ela constitui, portanto, uma classe administrativa que se reproduz não pela violência, mas pela competência percebida ou pelo prestígio derivado do saber institucionalizado.

René Girard, ao refletir sobre os mecanismos do desejo mimético, ajuda-nos a compreender a ambiguidade dessa configuração. A nobreza da espada, ao tornar o prestígio acessível apenas por meio da guerra e da hereditariedade, tende a transformar a competição em uma ameaça letal. Já a nobreza da toga, ao menos em tese, desloca o campo da rivalidade para o terreno simbólico da argumentação e da distinção técnica. Ela fomenta, portanto, uma arena de competição mais civilizada, menos sangrenta. No entanto, como adverte o próprio Girard, onde há mimetismo, há também inveja e escândalo: o desejo de ocupar o lugar do outro pode cegar a razão, gerar rivalidades estéreis e alimentar a intriga e o ressentimento. A toga não elimina o conflito; apenas o sublima.

É aqui que reside o ponto central deste ensaio: a existência de uma nobreza da toga não implica, por si só, a permanência de um Estado patrimonial. Pelo contrário, a nobreza da toga — se bem orientada — pode ser uma aliada decisiva na construção de um Estado impessoal, regido pelo primado da legalidade e voltado à promoção do bem comum. Essa nobreza, de fato, será tanto mais nobre quanto mais se colocar a serviço da república e não da perpetuação de estruturas patrimoniais. O risco, portanto, não está na sua existência, mas na sua captura por dinâmicas oligárquicas e privatistas — exatamente o que ocorria no antigo regime e que Faoro denuncia com agudeza.

Por essa razão, considero que propostas parlamentares que buscam combater os chamados "supersalários" do alto funcionalismo — e, em especial, aquelas que pretendem eliminar os honorários de sucumbência dos advogados públicos — não enfrentam o verdadeiro problema. Pelo contrário: representam um expediente populista e demagógico, que mascara a permanência do verdadeiro mal a ser combatido — o Estado patrimonial. Ora, os honorários de sucumbência não apenas têm respaldo constitucional, por tocarem a cláusula pétrea do direito de propriedade e a garantia da irredutibilidade remuneratória, mas também exprimem uma lógica meritocrática muitas vezes ignorada no debate público.

Na advocacia, seja ela pública ou privada, há um valor intrínseco na capacidade de identificar, antecipadamente, a viabilidade de uma tese jurídica, de estruturar estrategicamente uma demanda e de conduzi-la até a vitória. Essa capacidade é premiada — em ambas as esferas — por meio da sucumbência. Trata-se de uma retribuição vinculada à prudência, ao estudo, à ousadia racional, e não de um privilégio espúrio. Dizer que os honorários pertencem por natureza apenas à advocacia privada é ignorar que o mérito de enxergar, elaborar e vencer uma causa pode residir também — e com frequência — no advogado público, cuja atuação repercute, ademais, no interesse público.

O problema, pois, não é a existência de uma elite burocrática bem remunerada e dotada de certas prerrogativas legais. O entrave surge quando essa elite se transforma em instrumento de apropriação privada da máquina pública — quando, em outras palavras, a nobreza da toga se submete aos caprichos do patrimonialismo, em vez de combatê-lo. Reformas verdadeiramente republicanas devem mirar essa raiz, e não os galhos que, por vezes, confundimos com ela. A crítica ao chamado privilégio, quando descolada do contexto institucional e histórico, pode converter-se, ela própria, em instrumento de populismo — e, por vias tortas, fortalecer exatamente aquilo que pretendeu denunciar.

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