A Metamorfose Mimética do Estamento Burocrático Brasileiro
Durante séculos, o estamento burocrático no Brasil — tal como descrito por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder — foi reservado a poucos. Na esfera municipal, o poder era exercido pelos chamados "homens bons", uma elite oligárquica assentada sobre vínculos familiares, econômicos e simbólicos. Na esfera do Estado central, o acesso aos cargos administrativos dependia menos de mérito e mais de proximidade com os círculos do poder — fosse pela confiança pessoal, fosse por prerrogativas econômicas, educativas ou familiares que funcionavam como barreiras invisíveis de entrada. Para a maioria do povo, o Estado era uma instância transcendente, cuja autoridade era dada, não conquistada, e cuja composição parecia alheia a qualquer aspiração realista de pertencimento.
Essa configuração social corresponde, em termos girardianos, ao que se pode chamar de fase da mediação externa. Os modelos de desejo — aqueles que ocupam posições de prestígio, influência ou autoridade — eram socialmente distantes dos desejantes. Sua posição era naturalizada, muitas vezes sacralizada, e o próprio desejo de alcançá-los era, para a maioria, impronunciável. Essa distância simbólica funcionava como um dispositivo pacificador: ao serem percebidos como inalcançáveis, os modelos não suscitavam rivalidade. O desejo era, por assim dizer, domesticado pela hierarquia.
Com a progressiva consolidação das eleições democráticas e a difusão dos concursos públicos, essa arquitetura simbólica começou a ruir. Se a República de 1889 deu início a essa transformação, foi sobretudo a partir da Constituição de 1988 que ela ganhou densidade institucional. A função pública — antes um privilégio de poucos — passou a ser, ao menos formalmente, um espaço acessível a todos os cidadãos. Nesse novo arranjo, os modelos tornaram-se próximos, tangíveis, até mesmo banais. Não é exagero dizer que esse processo provocou, no Brasil, um abalo nas estruturas simbólicas da ordem social análogo ao da Revolução Francesa. Se lá o colapso foi súbito e sangrento, aqui ele se deu de forma paulatina e gradual, como convém a uma sociedade historicamente mais adaptada à negociação simbólica do que ao enfrentamento direto. Mas o ponto crucial é que, em ambos os casos, o caráter sacro da estrutura social foi corroído e com ele, as condições da mediação externa.
Esse movimento democratizante, embora positivo sob o ponto de vista republicano, trouxe consigo um efeito colateral estrutural: a intensificação da mediação interna. Com os modelos de desejo agora ao alcance de todos, instaura-se uma dinâmica mimética marcada pela rivalidade , pela comparação e pelo ressentimento. (No plano individual, que não nos interessa tanto no momento, isso se manifesta como uma inconstância crônica do desejo — ora voltado para a estabilidade, ora para o prestígio, ora para o poder —, mas sempre suscetível à influência de terceiros). No plano social, a consequência mais visível é o ódio mesquinho ao funcionalismo público , que se tornou alvo de uma antipatia crescente, alimentada tanto pelas frustrações individuais quanto por pulsões coletivas de bodes expiatórios.
Em meio a esse cenário, o servidor público — antes distante como o senhor de engenho ou o magistrado vitalício — passou a ocupar um lugar ambíguo : é modelo para os que desejam entrar no sistema, mas, justamente por isso, converte-se em alvo do ressentimento dos que ficaram de fora. Daí a frequência com que funcionários públicos são tratados com rudeza, desrespeito e até hostilidade, mesmo em centros urbanos em tese mais cosmopolitas. Essa rudeza cotidiana , muitas vezes disfarçada de crítica ao "privilégio", é o caldo de cultura necessário à formação do bode expiatório , um mecanismo central na teoria girardiana. O funcionário público, antes reverenciado ou ignorado, agora é simultaneamente imitado e perseguido .
Nesse contexto, não surpreende que todo servidor possa, em alguma medida, fazer sua a célebre frase de Shakespeare em Henrique IV: “Uneasy lies the head that wears a crown.” A coroa ou o cargo, aqui, já não é sinal de majestade incontestável, mas de exposição mimética, instabilidade simbólica e risco de sacrifício. O funcionário público moderno — particularmente o membro do estamento estatal — já não habita o mundo da transcendência, mas sim o campo minado das rivalidades democráticas , onde todo desejo é comparativo, e toda posição elevada é uma ameaça ao equilíbrio instável do desejo social.