A Violência e o Reino
O Evangelho de Mateus conserva um dos versículos mais enigmáticos e férteis para a reflexão exegética e teológica da tradição cristã. Trata-se de Mt 11,12, que na Nova Vulgata se lê: A diebus autem Ioannis Baptistae usque nunc regnum caelorum vim patitur, et violenti rapiunt illud. Em tradução corrente: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência, e os violentos o arrebatam.” O aparente paradoxo do enunciado tem alimentado múltiplas leituras ao longo da história da interpretação. O texto vincula a missão de João Batista à irrupção do Reino, introduz a noção de violência e associa a posse do Reino a uma ação de arrebatar.
Uma primeira leitura, de cunho mais moderno, compreende o usque nunc em chave de ruptura histórica. Até João Batista, vigoraria um tempo de violência — o Reino seria tomado à força, num contexto de expectativa escatológica tensa, marcado pela urgência e pela dureza da pregação profética. Em Cristo, porém, inaugurar-se-ia uma nova lógica: a do dom gracioso, em que a violência cede lugar à mansidão, e o Reino se oferece na simplicidade da fé. Essa leitura é coerente e possui uma força explicativa própria. Por exemplo, ela articula satisfatoriamente o paradoxo imediato anterior que Mateus apresenta: “Em verdade vos digo: entre os nascidos de mulher não surgiu maior que João Batista; mas o menor no Reino dos Céus é maior do que ele” (Mt 11,11). A razão da superioridade do menor seria a compreensão deste de que os violentos não arrebatam de verdade o Reino dos Céus, mas antes impedem a sua chegada. João Batista ainda esperaria um Messias vingador.
Entretanto, a leitura clássica, dominante entre os Padres da Igreja e recolhida por São Tomás de Aquino, é outra. Ela entende o usque nunc como continuativo. Ou seja, desde João até o presente — e para além dele — o Reino continua a ser arrebatado pelos violentos. Entretanto, a continuidade é mais nominal que real. O termo “violência” permanece, mas o seu conteúdo se transfigura: não mais a violência contra o outro, típica de um contexto de confrontos sociopolíticos e de resistência messiânica, mas a violência contra si mesmo — ascese, penitência, mortificação das paixões, disciplina da caridade. Assim interpretado, o texto conserva o vigor da linguagem profética e exige do discípulo uma decisão radical, mas ao mesmo tempo purifica o termo “violência” de qualquer conotação agressiva contra o próximo.
É verdade que essa leitura continuativa não articula de modo tão direto o problema da violência com o paradoxo do menor maior. O elo lógico entre os dois enunciados de Mt 11,11–12 é mais tênue nessa chave. Contudo, ela não fecha a porta para a compreensão do dito sobre João. Com efeito, a distinção entre o maior nascido de mulher e o menor no Reino continua inteligível se entendida como a diferença entre a Antiga Aliança, que João coroa, e a Nova Economia da Graça, na qual todo cristão participa pelos sacramentos. Mais ainda, o usque nunc continuativo revela-se espiritualmente mais comprometedor e possui, para usar uma expressão cara ao Evangelho, o sal da exigência cristã: não se pode alcançar o Reino sem uma “violência santa”, dirigida contra o próprio egoísmo e desordem interior.
Resta, porém, a questão: não seria o usque nunc de rompimento, ao alijar por completo qualquer ideia de violência do horizonte cristão, mais próprio de épocas de dissenso religioso, crise social e necessidade de reconciliação? Não teria ele, nesse sentido, maior capacidade pacificadora? A resposta não é necessariamente afirmativa. De fato, se ao usque nunc continuativo se acrescenta a nota da unidade de vida — isto é, a coerência entre a vida interior e a prática social —, então a exigência espiritual de violência contra si mesmo implica, de modo direto, a exclusão de toda violência contra o outro. Mais ainda: implica a sua substituição pelo dever da paz e da caridade. Quem se violenta espiritualmente para conquistar o Reino não pode senão desejar e promover a reconciliação no âmbito social.
Enfim, o versículo de Mateus 11,12, com sua formulação
paradoxal, permite tanto a leitura de ruptura quanto a de continuidade. A
primeira oferece clareza lógica e resolve de imediato o paradoxo do “menor
maior”. A segunda, mais fiel à tradição patrística e tomista, resguarda o
caráter exigente da vida cristã, purificando a linguagem da violência e
transfigurando-a em ascese e caridade. No fim, ambas podem ser lidas em
complementaridade: o usque nunc marca a transição histórica, mas também
prolonga no tempo o chamado à decisão radical, comprometedora e socialmente eficaz. O Evangelho não se esvazia em
sociologia, mas se cumpre na unidade de vida: quanto mais o cristão se violenta
a si mesmo, mais paz é capaz de dar ao outro.