Entre Conversão e Pressão
Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo |
A intersecção entre religião e relações de trabalho suscita problemas teóricos e práticos de alta complexidade, especialmente quando se trata da utilização de práticas proselitistas em ambientes de subordinação hierárquica. Sem dúvida, há algo de errado num empregador que, enquanto tal, busca converter seus funcionários. A hierarquia laboral — estruturada pelo poder diretivo do empregador — torna opaca a sinceridade da conversão do subordinado, que pode ser motivada menos por convicção religiosa do que pelo temor de desagradar seu superior. Nesse contexto, ninguém sabe ao certo se a adesão do empregado decorre de um encontro espiritual genuíno ou de mero mecanismo de autopreservação. Em casos assim, o empregador proselitista ofende, paradoxalmente, não apenas a dignidade dos empregados, mas também a própria religião que pretende propagar, reduzida a instrumento de controle. Não discordo, pois, de uma juíza do trabalho de Itabuna que condenou um empregador por obrigar uma funcionária a participar de leituras e meditações bíblicas, justificadas pelo empresário como suposta “motivação” para maior produtividade.
Todavia, esse fenômeno contemporâneo remete inevitavelmente à reflexão sobre certos relatos bíblicos. A Escritura apresenta episódios nos quais a conversão de uma pessoa irradia para toda a sua “casa” (domus), espaço no qual se entrelaçavam relações de família e de trabalho. O uso do possessivo — sua — denota a autoridade soberana do chefe de família, em cujas mãos se concentrava a unidade doméstica. A conversão, nesses casos, ocorre num ambiente de poder assimétrico, não muito distinto, à primeira vista, daquele que marca a relação entre empregador e empregado. Daí a indagação inevitável: em que medida essas conversões bíblicas, reais, diferem da conversão forçada ou induzida pelo empregador contemporâneo, como no caso baiano?
A teoria mimética de René Girard pode lançar luz sobre a distinção. Segundo o autor, o desejo humano é sempre mediado, e a diferença crucial reside na natureza dessa mediação. Nas conversões bíblicas, a relação é de mediação externa: o paterfamilias é soberano em tal grau que não pode ser rivalizado pelos membros de sua casa. A autoridade do chefe de família é incontestável e não está sujeita à mobilidade ou à disputa, razão pela qual a conversão se dá em um regime de alteridade radical, onde o modelo não é passível de imitação competitiva. Já na relação de trabalho dos últimos dias que correm, o problema não é tanto a hierarquia ou a assimetria em si, mas o caráter não fixo dessa assimetria. O empregado não vê o empregador como um modelo inacessível, definitivamente superior, mas como alguém que apenas ocupa, contingencialmente, uma posição ascendente dentro da mesma ordem social e econômica. Aqui, portanto, emerge a mediação interna, marcada por uma rivalidade e ressentimento que atrapalham mais que ajudam a conversão íntima.
Esse contraste se intensifica quando se analisa a finalidade do ato proselitista. Ao instrumentalizar a Bíblia como leitura motivacional, o empregador confessa uma intenção imanente, vinculada à eficiência produtiva e ao lucro da empresa. O horizonte último não é transcendente, mas econômico. O gesto, portanto, já nasce contaminado pela lógica da rivalidade interna, pois subordina o sagrado ao cálculo empresarial de poder e dinheiro. Diferentemente, a conversão bíblica — mesmo no ambiente hierárquico da domus — visava à adesão a um modelo transcendente, a Cristo, que escapa à lógica da competição e do lucro material. Em suma, a distinção decisiva não está na mera assimetria de poder, mas no tipo de mediação que ela engendra: externa e transcendente no contexto bíblico, interna e imanente no contexto contemporâneo.
Assim, a condenação judicial do empregador proselitista de Itabuna não é apenas um gesto de proteção da dignidade individual do trabalhador, mas também um reconhecimento implícito de que, em sociedades modernas, a confusão entre religião e hierarquia laboral inevitavelmente se dá sob o signo da mediação interna, com todos os riscos de manipulação, rivalidade e banalização do sagrado que dela decorrem.