Convivência

Soldado da FEB Oscar Garcez brincando com um prisioneiro de guerra alemão, Itália 1945


É recorrente, tanto no discurso cotidiano quanto no ambiente de trabalho, a percepção de que o mundo se divide entre pessoas boas e más, amigas ou inimigas, heróis ou vilões. Essa lógica dicotômica, embora sedutora por sua simplicidade, revela-se pobre para dar conta da complexidade da experiência humana. Trata-se, na verdade, de um resquício de pensamento linear — semelhante à distinção, ensinada em aulas de literatura, entre personagens planos e esféricos. A humanidade real, ao contrário da que se imagina nesses enredos simplificados, é profundamente esférica: contraditória, ambivalente, por vezes opaca até para si mesma.

Essa simplificação é particularmente visível em contextos de polarização ideológica, nos quais gregos se julgam justos combatentes contra troianos malignos — e vice-versa. A caricatura do outro como essencialmente perverso sustenta o próprio sentimento de retidão, e transforma o mundo em um campo de batalha moral permanente. No entanto, essa estrutura mental não se restringe ao debate político: ela permeia relações profissionais, sociais e familiares, nas quais a “rivalidade” e a “inimizade” não são apenas reações emocionais, mas posições existenciais fixadas por narrativas que atribuem ao outro um caráter essencialmente danoso.

Há, porém, uma perspectiva mais profunda e eticamente mais fecunda. É possível compreender que mesmo aqueles cujas ações parecem guiadas por egoísmo, vaidade ou malícia estão, em alguma medida, buscando estratégias para tornar sua existência menos insuportável. Nesse sentido, sua conduta, embora eventualmente injusta ou agressiva, pode ser lida não como maldade pura, mas como expressão trôpega de uma busca por felicidade. Tal leitura não exime de responsabilidade moral, mas impede a cristalização do outro como inimigo ontológico.

Essa postura abre espaço para a compaixão como fundamento das relações humanas — uma compaixão que não exige ingenuidade nem passividade, mas que se ancora na consciência de nossa própria vulnerabilidade e imperfeição. Ao reconhecer que todos partilham, em maior ou menor grau, da mesma fragilidade moral, torna-se possível não apenas suportar os conflitos, mas construir pontes entre grupos em oposição. Assim, é mais recomendável ser aquele que, no ambiente de trabalho ou na vida pública, se recusa a tomar partido na guerra fratricida entre gregos e troianos e busca ser interlocutor de ambos, não por neutralidade covarde, mas por fidelidade a uma ética mais alta — aquela que compreende que “os pacíficos e os mansos herdarão a terra”. Esse ideal encontra expressão notável em uma carta de Thomas More a sua filha, redigida enquanto estava preso por resistir a uma ordem real que contrariava sua consciência. Ali, More escreve:

“E rogo a Deus que emende aquele homem, e que lhe envie um tal modo de vida que ele possa, a tempo, ser meu companheiro no céu. Pois eu desejaria, Meg, que a minha consciência me servisse para morrer de tal forma, que eu não desejaria, por todo o bem deste mundo, estar na situação de ter a ocasião de ser companheiro dele no outro [mundo]. E suplico a Nosso Senhor, Meg, que me envie a graça de ter essa mentalidade, para que eu possa ser companheiro de todos eles.”

A passagem gira em torno de uma ambivalência semântica e moral da palavra partner (companheiro, parceiro): primeiro, More expressa o desejo de que seu adversário possa ser seu partner no céu — condição que pressupõe sua conversão e redenção; em seguida, rejeita a possibilidade de ser partner dele no inferno, ainda que lhe fosse oferecido “todo o bem deste mundo” em troca; por fim, pede a graça de tornar-se partner de todos, inclusive daqueles que lhe fazem mal.

Essa ambivalência de vocabulário é um recurso deliberado que reflete o dilema da convivência humana. A mesma pessoa pode ser vista como parceira eterna de salvação ou fugaz de perdição, a depender do desfecho espiritual de sua trajetória. Essa incerteza impõe, a quem busca viver humanamente, uma postura de abertura: ninguém deve ser descartado como inimigo irreversível, e mesmo os que erram hoje podem ser, um dia, nossos companheiros na plenitude.

A lição, em suma, é clara: os que hoje nos perturbam, nos desafiam ou nos ferem, são ainda nossos semelhantes — e, quem sabe, nossos futuros parceiros na eternidade. Cabe-nos, enquanto for possível, estender-lhes a condição de companheiros já no tempo presente, não por conveniência, mas por convicção. Cabe-nos, enfim, ser próximos, mesmo ao custo de estar ao alcance de sua mão inimiga. Como adverte More, o preço de evitar pequenas dores agora pode ser correr o risco de sofrimentos muito maiores mais adiante. E, ainda que a justiça divina os julgue e condene, resta-nos lamentar por sua ruína, não celebrá-la. Pois a caridade, para ser autêntica, não se exerce apenas entre os justos, mas sobretudo diante da injustiça.

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