O Túnel da Rivalidade


Nos debates políticos contemporâneos, a acusação dirigida ao ministro Alexandre de Moraes de manter uma convivência demasiado próxima com o Ministério Público replica, de modo quase caricatural, a crítica que em outro momento foi endereçada ao então juiz Sérgio Moro. Contudo, tal proximidade entre magistratura e Ministério Público não constitui exceção, mas prática ordinária em inúmeras comarcas brasileiras. Mais do que evidenciar uma falha objetiva, a replicação da acusação revela a lógica da rivalidade mimética, na qual os contendores imitam uns aos outros no lançamento de acusações, esvaziando-as de substância e reforçando o ciclo de antagonismos recíprocos.

Essa atmosfera saturada de rivalidade aparece também no episódio da suposta falsificação da data de uma decisão judicial. O uso de reportagens jornalísticas como subsídio informativo, em si, não é problemático — afinal, a jurisprudência admite a reportagem como notitia criminis. O problema emerge quando, já imerso em um ambiente de acusações inflacionadas, Moraes sente-se compelido a falsificar uma data, não para alterar o conteúdo decisório, mas para se precaver contra uma imputação futura. Trata-se de uma fraude que seria “inocente”, não fosse, antes de tudo, uma mentira — um sinal de que a dinâmica mimética desloca a atenção do essencial para o acessório, convertendo a disputa jurídica em batalha de suspeitas mais ou menos fundadas. Moraes está assustado com fantasmas.

Mais objetiva e de carne e osso é a assimetria investigativa: apenas indivíduos de um espectro político são alcançados pelas apurações, e não raro por iniciativa de ofício do próprio Supremo Tribunal Federal. A parcialidade, aqui, parece mais palpável. Ainda assim, defensores dessa prática alegam que a ameaça mais concreta à democracia, entendida não só como vontade majoritária, mas também como garantia universal dos direitos humanos, provém da extrema-direita. Tenho reservas quanto a esse argumento: se existe, sem dúvida, uma extrema-direita, também há uma extrema-esquerda. A seletividade de alvos sugere, portanto, mais uma cristalização de rivalidades do que um juízo prudencial e equânime de justiça.

De qualquer maneira, a confusão não se resolverá pela acumulação de dados demonstrativos, mas pela formação ética de um futuro orador — no sentido aristotélico do ethos - que eu ainda não sei quem é. A crise mimética chegou a tal ponto que não buscamos mais argumentos, mas um homem. Vale lembrar nesse ponto que o seu próprio ethos não pode ser proclamado em alto e bom som por quem almeja persuadir; não basta autodefinir-se democrata para convencer um público democrático. O ethos se manifesta na própria tessitura do discurso: na escolha das palavras, na estrutura das frases, numa abertura, ainda que necessariamente crítica, para a alteridade.

Sobre tal assunto, a história recente brasileira oferece um material interessante para análise. O presidente João Figueiredo jamais foi ornado pelo ethos democrático: basta recordar a infeliz declaração de que “se tivesse de viver com um salário mínimo, daria um tiro na cabeça”. A tragédia aristocrática da frase destoava radicalmente da experiência das camadas populares, que não podem se dar ao luxo de um gesto tão depressivo. Alexandre de Moraes, com seu dedo do meio em riste ante a turba, tampouco encarna ethos democrático. Bolsonaro, em contrapartida, aproximou-se mais desse ethos popular, embora pesquisas mais atuais, como as divulgadas pela Gazeta do Povo, indiquem que sua ação política no exterior é percebida muitas vezes como defesa da própria família, e não como compromisso com o povo.

Lula, por sua vez, é um caso peculiar: o ethos democrático que cultivou desde sua origem operária continua a ser um ativo político, embora cada vez mais diluído pela distância temporal de sua trajetória sindical. É preciso considerar ainda que o que lhe falta não é apenas ethos, mas também a sabedoria prática, cuja ausência é evidenciada pela arrogância em suas críticas aos Estados Unidos, além da honestidade, que foi maculada por processos criminais extintos pelo STF sem apreciação de mérito.

À luz de tudo isso, parece-me ingênuo esperar de qualquer alinhamento incondicional às grandes correntes políticas atuais — lulismo ou bolsonarismo — a tal luz no fim do túnel. A superação da crise exige alguém que, à semelhança de Ulysses Guimarães, que recolheu em si os opostos do sindicalismo operário de Lula e da democracia social de Fernando Henrique Cardoso, saiba unificar polos diversos. A questão, todavia, é perturbadora: será que, para haver uma união entre lulistas e bolsonaristas, seria necessário um novo antagonista universal de proporções ditatoriais? Nada une tanto quanto um inimigo comum...

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