"In Nomine Patris..."

Trigo e Corvos

A tradição filosófica ocidental conheceu, desde cedo, uma tensão entre dois modos de compreender o bem. De um lado, a perspectiva platônica, que concebe a Ideia de Bem como princípio supremo, fonte de inteligibilidade de todos os bens particulares; de outro, a perspectiva aristotélica, para a qual o bem político e o bem moral se sustentam em si mesmos, sem necessitar da remissão a uma ordem transcendente. É mais saudável partir do extremo aristotélico do que de sua antípoda platônica, pois a vinculação direta entre o bem político e uma Ideia de Bem universal tende a dissolver a especificidade da vida prática e a obscurecer a autonomia do campo político.

Os Magna Moralia exprimem de modo lapidar e didático essa orientação metodológica: não se deve buscar no Bem participado — entendido como realidade metafísica transcendente — o princípio explicativo dos bens participantes. Antes, deve-se compreender os bens humanos em sua própria ordem, segundo sua teleologia própria. Da mesma forma que médico não pode fazer as vezes de um marinheiro, o teólogo não pode substituir um governante. 

Entre tais bens humanos, o bem político, e dentro dele o bem moral, ocupam posição de destaque, justamente porque estruturam a convivência comunitária e orientam a vida prática. Esse preceito metodológico de distinção fornece um solo fértil para a reflexão posterior sobre a política enquanto esfera autônoma da existência humana. De fato, a suficiência do bem político em si mesmo é uma das condições de possibilidade históricas e conceituais da separação entre Igreja e Estado. Se o bem político pode ser compreendido e realizado sem a necessidade de apelo a uma teologia do Sumo Bem, então a política pode adquirir configuração própria, distinta daquela que caberia a uma instituição religiosa. A separação moderna entre Igreja e Estado não se funda, portanto, apenas em contingências históricas ou em disputas de poder, mas também numa possibilidade filosófica franqueada séculos antes já no interior da tradição aristotélica: a de que a vida prática possui seus próprios princípios e fins.

Isto não implica, entretanto, que a influência eclesial deva ser descartada como ilegítima na arena política. Pelo contrário, quando a Igreja sustenta que certos ensinamentos sobre o homem podem ser conhecidos pela razão natural, está fazendo uma alegação que diz respeito ao próprio domínio do bem político e moral. Nesse sentido, a contribuição eclesial pode ter legitimidade, na medida em que se baseia em razões acessíveis a todos os credos. O reconhecimento da autonomia política não equivale a um veto à participação da Igreja, mas à afirmação de que a validade da ordem política não depende de submissão a um bem transcendente.

Assim, a separação entre Igreja e Estado e a suficiência do bem político significam que a configuração concreta da ordem política é autônoma em relação à Igreja. A política deve ser compreendida segundo seus próprios critérios e finalidades, mesmo quando se beneficia das contribuições que a razão teológica pode oferecer. Assim, a autonomia do bem político não elimina o diálogo com o religioso, mas o enquadra num horizonte em que a política permanece senhora de si, capaz de responder por suas escolhas em termos propriamente humanos.

Esse diálogo, todavia, não é feito necessariamente por vias institucionais oficiais. E, a meu ver, essa via tampouco é a mais eficaz, pois corre o risco de confundir as duas esferas autônomas, a da religião e a do Estado, suscitando prevenções. O diálogo político - que se dá fora do templo e de forma alguma é um apêndice da liturgia - é mais fecundo quando o cidadão fala não in nomine Patris, mas em seu próprio nome, em vernáculo, de igual para igual com seus concidadãos. É nessa arena propriamente civil que a influência religiosa se mostra legítima: quando se traduz em razões compartilháveis, abertas ao exame público. Essa é uma das razões pelas quais aprecio a iniciativa da Comunhão Popular, que nesse aspecto se encontra anos-luz à frente daqueles seus opositores católicos que buscam eliminá-la do debate com um juízo sumário, rejeitando-a  em nome de um Cristo falso, em contradição com o próprio Evangelho, que ensina a dar também a César o que é de César, e não só a Deus o que é de Deus. E o que se deve dar a César num debate público é justamente a inteligibilidade das próprias palavras à luz só da razão.  

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